A possibilidade de transcendência é o que parece mover K. (Ryan Gosling), personagem em torno do qual ganha corpo a narrativa do ótimo Blade Runner 2049, de Denis Villeneuve, que ontem chegou aos cinemas brasileiros. Embora o diretor canadense não subverta, ou traia, o primeiro filme, de Ridley Scott, lançado há 35 anos, sua sequência, de certa forma, se aproxima mais do livro de Philip K. Dick que o original, hoje considerado um clássico da ficção científica e referência incontornável quando se pensa em histórias sobre futuros distópicos. A contribuição do novo episódio é emprestar-lhe uma dimensão mais existencialista que o longa que o originou.
Como Rick Deckard (Harrison Ford), protagonista do primeiro longa, K. é um caçador de androides, mas desde o início da trama ele também é um replicante, encarregado de tirar de linha, e eliminar se preciso, modelos antigos que se rebelaram contra os humanos. Acontece que K., em meio à sua jornada, vislumbra a possibilidade de ser mais do que uma máquina que uma criatura sintética, construída à imagem e semelhança do homem. Ele descobre, por fatos que não cabe aqui revelar, que pode ter alma, que não seria um privilégio dos humanos, seus criadores.
Essa esperança coloca K. em movimento e acaba o conduzindo a Deckard, hoje vivendo na clandestinidade, após desaparecer por 30 anos para viver um romance proibido com Rachael (Sean Young), androide que deveria ter eliminado, mas por quem se apaixona, sem saber que ele, também, é um replicante.
Villeneuve tem a seu crédito filmes como Incêndios, O Homem Duplicado e A Chegada, indicado ao Oscar de melhor filme neste ano. Toda sua obra compartilha um traço em comum: a busca pela identidade. Ela é o dilema de K., que embora aparente estar conformado com sua condição de máquina, vive em estado de profundo desconforto – percebe em si lampejos de humanidade com os quais não consegue lidar.
Villeneuve tem a seu crédito filmes como Incêndios, O Homem Duplicado e A Chegada, indicado ao Oscar de melhor filme neste ano.
Se em Blade Runner, O Caçador de Androides predomina uma estética neo noir transposta para o futuro, com toques de ficção científica cyberpunk, no novo filme, embora mantenha boa parte dessa atmosfera algo claustrofóbica, a fotografia do mestre Roger Deakins explora tons mais quentes, mas não menos lúgubres, Há uma dimensão desértica que inexistia no primeiro longa, já que o planeta tornou-se quase estéril nos últimos 30 anos.
O roteiro, muito bem amarrado, é rico em referências. Além de dialogar intensamente com as histórias de Dick, que o inspiraram, estabelece pontes com obras cinematográficas e literárias de vários tempos, que vão de Ela, sublime obra futurista distópica de Spike Jonze, ao clássico O Processo, de Franz Kafka. Chega a citar o próprio Blade Runner original, ao “replicar” uma das suas cenas mais emblemáticas: a das lágrimas na chuva.
Viilleneuve toma cuidado para não se afastar demais do filme original, mas trata de deixar sua marca, trazendo para o filme inquietações do tempo presente, como as ameaças ambientais, o uso de mão de obra infantil em regime de quase escravidão, a incomunicabilidade e a solidão. É um filmaço que se sustenta por si só.
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