Uma das marcas do nosso tempo é o cinismo. O diretor japonês Hirozaku Kore-eda vai na contramão dessa tendência, fazendo um cinema humanista, com foco na família em muitas e até subversivas configurações. Seu novo longa-metragem, Broker: Uma Nova Chance, em cartaz nos cinemas, é povoado por personagens órfãos, que amargam a dor do abandono e da negligência. O filme não se alimenta (apenas) dessa dor, mas, principalmente, da esperança de se formarem ao longo da estrada narrativa, e às vezes até por acaso, laços tão fortes e até mais significativos de afeto.
Na primeira sequência, uma jovem mãe solteira deixa seu bebê recém-nascido no chão, diante de uma caixa para adoção em uma suposta instituição filantrópica. Não sabe que o mecanismo é operado do outro lado por dois traficantes de crianças, sujeitos que pegam os recém-nascidos para vender.
Como na Coreia do Sul, país onde a trama se passa, as leis de adoção são rígidas, muitos casais preferem encurtar a espera, e a burocracia, optando pela ilegalidade, pela compra de bebês que tenham as características de sua preferência – até o formato das sobrancelhas pode ser um fator de escolha, acreditem ou não.
Como em uma comédia de erros, a mãe das crianças reaparece e, de certa forma, flagra os atravessadores de bebês, que usam uma lavanderia como fachada para seu negócio ilícito. Sem saber ao certo como reagir, eles acabam a incorporando à “equipe”. Já são quatro: os dois traficantes, a jovem e seu bebê, um menino. Todos têm em comum um traço definitivos: foram abandonados e foram privados de uma família convencional.
Como já havia feito em Assunto de Família, que lhe deu a Palma de Ouro, Kore-eda opta por dar protagonismo a personagens marginais, muitos deles imersos na contravenção – traficar crianças não é apenas imoral, mas um crime.
Ao agregar a jovem, disposta a controlar a negociação, para ter absoluta certeza de que o bebê será adotado por uma família sólida, eles iniciam uma espécie de jornada redentora, que toma a forma de um road movie. Não sabem que, desde a noite chuvosa em que a mãe abandonou o filho, todos os seus passos estão sendo seguidos por duas mulheres policiais dispostas a flagrar a operação de tráfico.
Nesse percurso, cheio de contratempos, a improvisada “gangue” de atravessadores de crianças, após uma parada em um orfanato, encontra um garotinho apaixonado por futebol que, cansado de esperar por uma adoção que nunca vem, se junta à trupe, que em meio ao processo de tentar vender o bebê, vai se tornando cada vez mais parecida com uma família, por conta dos vínculos de afeto que naturalmente brotam entre eles.
Como já havia feito em Assunto de Família (2018), filme que lhe deu a Palma de Ouro no Festival de Cannes, Kore-eda opta por dar protagonismo a personagens marginais, muitos deles imersos na contravenção – traficar crianças não é apenas imoral, mas um crime. A mãe do bebê, a trama irá revelar, é prostituta. Mas a lente sob a qual o cineasta os coloca não é a do julgamento moral, do maniqueísmo. Sem absolvê-los, o japonês os humaniza.
Para isso, Kore-eda nos oferece um roteiro que, na superfície, e nos seus primeiros 30, 40 minutos, parece frouxo e sem foco, entre a farsa e a tragédia, que choca e faz rir, também brincando com o suspense e o melodrama. Aos poucos, as caixas nesse caminhão, aparentemente caótico, vão entrando em ordem organicamente, porque dependem da complexidade dos personagens, quase todos surpreendentes e muito bem delineados – dos dois traficantes à dupla de policiais.
Aqui vale ressaltar o atravessador de bebês Há Sang-hyun, que deu ao veterano ator Song Kang-ho (de Parasita) a Palma de melhor ator em Cannes, onde o filme também recebeu o Prêmio Ecumênico, em reconhecimento ao seu grande teor humanista. O personagem, um homem maduro, que no passado não conheceu os pais biológicos ou foi adotado, e no presente fracassa como marido e pai, é tristíssimo, ainda que também seja o alívio cômico da trama. A sutileza e as nuances de sua interpretação fazem muita diferença.
Broker não nos subestima com espectadores, explicando didaticamente a trama. Prefere nos convidar a imergir na dura e violenta vida desses personagens, mas não de maneira abrupta, e tampouco exótica e superficial. Não há no longa uma fetichização da marginalidade. A ideia é permitir que seus personagens sejam vistos como seres humanos, e justamente aí reside a imensa beleza do filme.
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