Zain (interpretado pelo excelente Zain Al Rafeea) é um menino tão maduro para a sua idade que chega a querer processar os próprios pais por ter nascido. Uma idade, aliás, que nem se sabe ao certo qual é. Tanto por nunca ter sido registrado, ou seja, não existir oficialmente para o Estado, quanto pelo fato de seus pais não lembrarem com exatidão a sua data de nascimento, Zain ignora quantos anos tem.
Suspeita-se que seja 12 anos. Pelo menos é o que atesta um laudo médico segundo o qual, entre outras coisas, a criança não tem mais dentes de leite. Em poucos segundos de exibição de Cafarnaum (2018), da diretora Nadine Labaki, o espectador recebe todas essas informações sobre aquele que é o protagonista deste filme concorrente ao Oscar 2019 pelo Líbano na categoria melhor filme estrangeiro.
A preocupação com a idade cronológica, no entanto, acaba sendo considerada mera formalidade no decorrer da história, já que a maturidade demonstrada pelo pequeno notável é estarrecedora. Uma maturidade adquirida de forma rápida e compulsória em razão das inúmeras e profundas provações lançadas em sua vida, de todas as direções, pelo contexto de miséria em que está mergulhado.
Além de ajudar a cuidar de seus irmãos menores, saber tratar com desenvoltura a primeira menstruação da irmã e trabalhar com responsabilidade em uma mercearia, Zain já cometeu um crime e, inclusive, chega a ser preso, situação que desencadeia um processo judicial altamente midiático.
Cafarnaum, nesse sentido, é um filme que oscila entre (1) a denúncia social da situação de excluídos que vivem (ou sobrevivem) em meio à penúria e (2) a simples exploração cinematográfica da miséria. Muitas situações podem soar forçadas aos olhos do espectador, como aquela em que um bebê tem a perna amarrada na calçada para não ir em meio aos carros enquanto Zain descansa ou vende algo; o leite em pó derramado sobre os olhos desse mesmo bebê faminto; ou a cena terrível em que uma refugiada etíope espreme os próprios seios para extrair todo o leite e assim evitar que as autoridades descubram que ela tem um filho.
A lista de desgraças exibidas em ‘Cafarnaum’ não é pequena. Se uma leitura possível da obra pode destacar a simples exploração da exclusão social, outra linha de interpretação pode considerar o trabalho um apelo à sensibilidade em favor dos refugiados e outros sofredores.
A lista de desgraças exibidas em Cafarnaum não é pequena. Se uma leitura possível da obra pode destacar a simples exploração da exclusão social, outra linha de interpretação pode considerar o trabalho da diretora Nadine Labaki e dos roteiristas Jihad Hojeily, Michelle Keserwany e da própria Nadine um apelo à sensibilidade em favor dos refugiados e outros sofredores. A percepção do espectador tende a deslocar-se entre uma e outra leitura.
A escolha do título não passa despercebida, uma vez que a relação aparentemente interminável de situações difíceis vistas pelo olhar de uma criança (e por ela vivenciadas) contrasta com a referência à cidade na qual, segundo os relatos bíblicos, aconteceu a vida pública de Jesus, com diversos milagres e pregações.
Onde estaria o amor ao próximo (seja ele quem for) tão propagado por Cristo se ainda hoje o mundo é capaz de possuir e manter o inferno que as lentes da diretora exibem? O filme parece fazer essa pergunta.
Em meio ao caos, às lágrimas e ao profundo convite de empatia, fica difícil acompanhar a trajetória de Zain e sair incólume à concepção de que “bandido bom é bandido morto”. As decisões do roteiro e de toda mise-en-scène (incluindo a predominância da nervosa câmera na mão) são uma profunda exposição do quanto julgamentos rápidos e prontos pelo senso da maioria tendem a ser perigosos, incompletos e injustos.
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