É impossível dissociar o primeiro longa-metragem de Carolina Markowicz, o atordoante Carvão, em cartaz nos cinemas, do Brasil contemporâneo. Merece real atenção o fato da lente da diretora não procurar estabelecer julgamentos, parece menos ainda interessada em correlacionar causa e consequência.
A trama de Carvão, que se passa em um Brasil do campo, é construída com todas as idiossincrasias que compõem os rincões do país, tão idealizado (e estereotipado) pelo cidadão médio – e, por que não, pelo cinema. Sob esta perspectiva, Markowicz parece também uma espectadora, que deseja captar (e capturar) as vicissitudes de seus personagens.
Em uma cidade do interior do país, Irene (Maeve Jinkings), Jairo (Rômulo Braga) e Jean (Jean de Almeida Costa) compõem uma família que luta para sobreviver, retirando seu sustento de uma pequena carvoaria no quintal de casa. Soma-se a esse núcleo, a figura do avô, pai de Irene, cuja saúde debilitada faz com que ele passe os dias na cama.
O velho faz tratamento com oxigênio para sua insuficiência respiratória, o que move uma das poucas visitas que a família recebe: um agente de saúde, responsável por realizar a manutenção do aparelho.
A diretora opta por ampliar nossa percepção no momento em que tudo tenderia a um reducionismo.
Essa rotina fechada em si muda quando uma agente do posto de saúde aparece na casa e, sem papas na língua, afirma que o pai de Irene não tem chance de recuperação, mas que pode ter uma solução para o problema da família.
Pressionados pelas dificuldades financeiras, aceitam participar de um esquema que envolve receber um traficante argentino, que precisa de um lugar para se esconder.
A chegada de Miguel (César Bordón) não muda apenas a rotina da casa, ela é catalisadora de um mergulho mais profundo de Carolina Markowicz nas entranhas da complexidade que permeia o Brasil apartado do litoral.
Miguel é um corpo estranho, cuja brutalidade de sua “carreira” entra em choque com a pasmaceira daquela família a quem ele mesmo considera nojenta, asquerosa, de uma realidade totalmente diferente a dele.
No entanto, nada é tão preto no branco em Carvão. A diretora opta por ampliar nossa percepção no momento em que tudo tenderia a um reducionismo.
Aos poucos, quem parecia ser o corpo violento, uma espécie de representação do mal urbano, caminha para o amansamento, a ser tomado de assalto (e tornar-se vítima) daqueles a quem ele parecia assustar.
O filme parece engolir todas as possíveis ideias pré-concebidas até então (por parte do espectador, não do roteiro), através de um processo de aprofundamento nas complexidades dos personagens, muitas delas trazidas a partir do choque do estranhamento com Miguel.
Suas características mais guardadas vêm à luz, interligadas, criando contextos que beiram o absurdo e escancaram um ecossistema distante do idealizado.
Todavia, Carolina Markowicz não faz juízo de valor. Sua lente é observadora desse meio em que as violências íntimas eclodem pela ausência, pelo medo ou pela fé. A homossexualidade escondida de Jairo, a repressão sexual de Irene, a ausência de uma figura paterna a Jean, são ingredientes de um caldo de cultura que faz surgir o pior das pessoas.
Carvão é um filme mais conectado com as raízes profundas de nosso desequilíbrio como sociedade do que aparentaria de início. E é nessas entrelinhas que a ferocidade do roteiro se evidencia.
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