Foi com o provocador Cloud – Nuvem de Vingança, mais recente obra do aclamado cineasta japonês Kiyoshi Kurosawa, que a 14ª edição do Olhar de Cinema – Festival Internacional de Curitiba teve sua abertura oficial, em sessão realizada na emblemática Ópera de Arame. O filme, que funde drama psicológico, crítica social e elementos de suspense, marcou o início do evento, ao lançar um olhar inquietante sobre as engrenagens do capitalismo de plataforma e a radicalização silenciosa fomentada pelas redes.
No centro da narrativa está Yoshii Ryōsuke (interpretado por Masaki Suda), um jovem operário que, nas horas vagas, atua como revendedor oportunista de produtos adquiridos com barganhas agressivas — entre eles, equipamentos médicos. Seu trabalho informal, baseado em lucros rápidos e pouco escrúpulo, ganha fôlego quando um amigo (Masataka Kubota) o instiga a pensar maior. Instalado em um condomínio industrial nos subúrbios, ele passa a se dedicar obsessivamente ao negócio, acompanhado pela namorada Akiko (Kotone Furukawa), cuja presença na trama, reduzida a desejos vazios e alienação emocional, carrega uma representação notadamente misógina, que reforça estereótipos de uma feminilidade passiva e consumista.
Com sua habitual habilidade em construir atmosferas carregadas de inquietação, Kurosawa transforma os espaços banais em zonas de tensão latente. O ambiente onde Ryōsuke vive e trabalha é frio, metálico, impessoal. E, como em muitas de suas obras, o real lentamente se contamina com o irracional. A entrada em cena de Sano (Daiken Okudaira), jovem assistente que descobre uma comunidade de consumidores furiosos com os produtos defeituosos vendidos sob o codinome “Ratel”, acelera essa transição. O que começa como um estudo de personagem se transforma num pesadelo de justiça por conta própria, à medida que figuras comuns se unem para punir o protagonista, num movimento que evoca a lógica distorcida dos filmes da série The Purge.
Cloud – Nuvem de Vingança evita julgamentos fáceis. A escalada de violência que se segue — com invasão domiciliar, perseguição armada e reviravoltas bizarras, como o passado yakuza de Sano — não é apresentada como uma moral necessária, mas como parte de uma engrenagem doentia, em que todos parecem capturados por uma lógica de aniquilação. Um dos vingadores, inclusive, já participou de ações semelhantes antes e afirma: “A gente faz o que quer”. Kurosawa insinua, com isso, que o que está em jogo não é apenas uma resposta individual, mas a coletivização do ressentimento em tempos de redes sociais e desemprego emocional.
Há, no entanto, um subtexto mais profundo que atravessa o filme: uma aura fáustica, em que o protagonista parece ter feito um pacto silencioso com as forças impessoais do capital, vendendo sua alma em troca de autonomia e lucro.
Há, no entanto, um subtexto mais profundo que atravessa o filme: uma aura fáustica, em que o protagonista parece ter feito um pacto silencioso com as forças impessoais do capital, vendendo sua alma em troca de autonomia e lucro. Como em Fausto, a ilusão do controle cede lugar ao caos — e a queda é inevitável. O filme se encerra com um momento de ressonância metafísica, quase onírica, que reforça a visão sombria de Kurosawa sobre o mundo contemporâneo.
Apesar das tintas de gênero — o thriller, o horror psicológico, o drama moral —, Cloud – Nuvem de Vingança está menos interessado em entreter do que em revelar a lógica corrosiva de um sistema que transforma tudo em mercadoria, inclusive as relações humanas. O que o cineasta japonês parece afirmar, com sua narrativa hipnotizante e seu rigor formal, é que o verdadeiro horror não vem de fora: ele habita a casa, o trabalho, os vínculos, os desejos.
Ao escolher Cloud – Nuvem de Vingança como filme de abertura, o Olhar de Cinema reafirma sua vocação para o risco estético e o pensamento crítico, ainda que a recepção, por parte do público tenha sido algo tépida, talvez por conta do frio enregelante que tomou a Ópera de Arame ao longo da projeção. Um início arrebatador para um festival que, mais uma vez, convida o público a olhar o mundo com outros olhos — mesmo que o que se veja seja difícil de encarar.
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