O filme Ela Disse, em cartaz nos cinemas brasileiros, chega ao fim antes da repercussão planetária do movimento Me Too. Seu foco é outro: reconstitui, passo a passo, a gênese da série de reportagens, assinadas pelas jornalistas do The New York Times Jody Kantor e Megan Twohey, ganhadoras do prêmio Pulitzer.
O longa-metragem e baseia no livro homônimo das duas repórteres sobre a apuração das acusações de estupro e abuso sexual contra o todo poderoso produtor Harvey Weinstein, fundador do estúdio Miramax, que nunca aparece de frente no filme. Ouve-se apenas sua voz e veem-se suas costas.
É acertada decisão da cineasta alemã Maria Schrader (da minissérie Unorthodox) e da roteirista e dramaturga inglesa Rebecca Lenkiewicz de não transformarem Weinstein em personagem.
O filme não fala sobre ele, mas a respeito das consequências de seus atos abjetos. Retrata a dor de suas vítimas e, principalmente, o processo de apuração da série de matérias – as duas repórteres passaram quase um ano tentando convencer as vítimas a contar suas histórias.
Nesse aspecto, Ela Disse se aproxima de outros importantes filmes sobre jornalismo investigativo, como The Post – A Guerra Secreta (2017), Spotlight – Segredos Revelados (2015) e Todos os Homens do Presidente (1976). A diferença está no fato de que, como se trata de uma história sobre repórteres mulheres que investigam crimes cometidos contra outras mulheres, a condição feminina é central nas duas pontas da trama. Jody Kantor e Megan Twohey são personagens tridimensionais, mais do que heroínas ou jornalistas.
Jody Kantor e Megan Twohey são personagens tridimensionais, mais do que heroínas ou jornalistas.
Jody, vivida pela ótima atriz americana Zoe Kazan (de Doentes de Amor), é casada com outro jornalista, mãe de duas meninas e tenta equilibrar sua vida profissional e pessoal nem sempre com êxito. As filhas e o marido ressentem de sua falta, e começam a temer por sua segurança, porque o caso envolve poderosos.
Interpretada pela britânica Carey Mulligan, indicada ao Oscar por Educação e Bela Vingança, Megan começa o filme grávida, investigando denúncias de assédio sexual contra o então candidato a presidente Donald Trump. Após dar à luz uma menina, a jornalista enfrenta depressão pós-parto e, para conseguir lidar melhor com a doença, volta a trabalhar, mergulhando de cabeça na investigação do caso Weinstein, que hoje cumpre pena de 23 anos em Nova York e pode, após novo julgamento criminal em Los Angeles, somar mais décadas à primeira sentença.
Muitas das vítimas do produtor não eram estrelas, mas jovens produtoras, assistentes, secretárias, caladas por meio de ameaças, mais ou menos veladas, e de acordos financeiros, que as condenaram ao mais completo silêncio.
Em Ela Disse, são citadas apenas duas das atrizes reconhecidas que Weinstein estuprou e/ou assediou. O caso mais interessante é o de Ashley Judd (de Fogo Contra Fogo e Crimes do Primeiro Grau), que vive o próprio papel no filme. Após ter repelido as abordagens do produtor, muitas portas se fecharam para ela em Hollywood e sua carreira entrou em declínio.
Quando concordou em contribuir como fonte para a reportagem do The New York Times, Judd tornou-se peça fundamental no processo que desencadeou muitas novas denúncias contra Weinstein.
Outra estrela citada no filme é Gwyneth Paltrow, premiada com o Oscar de melhor atriz por Shakespeare Apaixonado, produzido por Weinstein. Ela não aparece, mas sua voz pode ser ouvida em uma ligação telefônica com Jodi Kantor.
Essa aproximação do gênero docudrama, no qual há um hibridismo de ficcionalização e traços documentais, fazem de Ela Disse, conduzido por sua diretora com firmeza e sobriedade, uma obra importante e dramaticamente potente, eletrizante para fãs de filmes sobre jornalismo.
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