Em termos científicos, fogo fátuo é um fenômeno que acontece nas superfícies de lagos, pântanos e mesmo cemitérios, quando um corpo em decomposição libera gás metano, gerando uma explosão. Talvez o fato do diretor português João Pedro Rodrigues ter chamado seu filme de Fogo-Fátuo já seja uma primeira provocação nesta pequena obra que se autointitula como uma “comédia musical”.
Isto porque há algo de explosivo nesta obra. Na verdade, Fogo-Fátuo é uma pérola queer de significados profundos, que se propõe a reinventar aspectos da história de Portugal com uma jocosidade que talvez só seja possível na ficção (um pouco como faz Tarantino ao imaginar um novo fim ao nazismo em Bastardos Inglórios).
O filme de João Pedro Rodrigues inicia no futuro, em 2069 (o número, como se verá, também se repete em uma cena do filme). Vemos, nesse começo, um monarca moribundo que é velado enquanto os súditos aguardam a sua morte. Nas paredes, há quadros gigantes que pintam imagens coloniais, repletas de pessoas negras dos países africanos que foram colonizados por Portugal. Neste mesmo momento, um sobrinho-neto brinca sobre o rei e solta um pum.
Fica claro que a premissa do jovem diretor é subverter – tanto as regras estipuladas ao cinema, tanto a seriedade datada com que o passado racista de Portugal é pintado.
Fica claro então que a premissa do jovem diretor é subverter – tanto as regras estipuladas ao cinema, tanto a seriedade datada com que o passado racista de Portugal é pintado. Por isso, a história é tresloucada de propósito. Ela gira em trono do loiríssimo príncipe Alfredo (Mauro Costa), que comenta com o seu pai, Eduardo (Miguel Loureiro) que descobriu sua vocação: quer ser bombeiro. Mas não quer virar sargento (o que seria o caminho natural de um nobre), mas sim voluntário, atuando como soldado da paz.
Depois de rirem da cara dele, os pais autorizam que Alfredo vá para um quartel adquirir treinamento. Lá, ele convive com bombeiros cujo passatempo é brincar de um jogo de adivinhação: eles encenam (nus) quadros clássicos e esperam que os participantes reconheçam. Alfredo, que estuda História da Arte, erra tudo.
‘Fogo-Fátuo’: um conto de fadas queer
Fica então bem claro que Fogo-Fátuo é uma comédia diferente, que se alimenta de um deboche sutil que se concretiza quase como se fosse um conto de fadas LGBTQIA+. O pano de fundo são as diferenças raciais entre a nobreza e os descendentes de colonizados, como uma espécie de reinvenção do passado.
Um bombeiro negro chamado Afonso (André Cabral) é designado para treinar o jovem príncipe – que não recebe qualquer regalia por sua condição real. Muito pelo contrário: tanto os colegas quanto a comandante (Cláudia Jardim) debocham o tempo todo de sua delicadeza, e do fato de que Alfredo e Afonso estudam História da Arte e Ciências Sociais (“por onde andam os engenheiros?”, ela se pergunta).
Fogo-Fátuo então se desenrola com ênfase no musical, em que a aproximação crescente entre a dupla (um homem branco e um negro, dois produtos de contradições históricas que nutrem uma atração irresistível entre si) faz desencadeando em tesão, alegria e dança.
Neste filme-sonho, cantigas de ninar são refeitas para virar provocação e xingamentos viram frases que excitam durante o sexo. Provocador, Fogo-Fátuo é um breve (mas delicioso) passeio que ri de forma leve da história de Portugal – e, consequentemente, da nossa também.
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