O que é um monstro? No arrebatador A Forma da Água, longa-metragem do cineasta mexicano Guillermo del Toro (de O Labirinto do Fauno), decifrar, e repensar, esse conceito é uma questão central. A produção, que levou o Leão de Ouro no último Festival de Veneza, agora desponta como um dos favoritos ao Oscar 2018, na disputa em 13 categorias, incluindo melhor filme e direção. Algo especialmente notável se pensarmos que, em tese, trata-se de um representante do cinema de horror, gênero considerado menor na história do prêmio – são raros os títulos que alcançam tamanho reconhecimento, como O Exorcista (1973) e Corra!, também na briga pela estatueta este ano.
Dentro do universo do terror, A Forma da Água pertence ao subgênero “filme de monstro”, muito popular mas algo subestimado. Nos Estados Unidos dos anos 1960, tempos de Guerra Fria e grande turbulência social, uma criatura misteriosa – meio homem, meio anfíbio – é retirada das águas de uma lagoa na Amazônia e mantida como segredo de Estado em um laboratório do governo norte-americano. Tem como cão de guarda o agente Richard Tricklaand (o extraordinário Michael Shannon, de Animais Noturnos), que o enxerga como uma ameaça, um ser a ser cruelmente dissecado e estudado porque representa um “outro” desconhecido, que precisa deixar de existir. Uma monstruosidade, portanto.
Mas ele não é o único.
O belo roteiro original, escrito a quatro mãos por Del Toro e Vanessa Taylor, subverte um determinado tipo de cinema, entre o terror e a ficção científica, que na Hollywood pós-Segunda Guerra Mundial servia como metáfora para falar do temor e dos riscos representados pela União Soviética e o regime comunista e a sexualidade reprimida na sociedade da época, como O Monstro da Lagoa Negra (1954), com o qual o filme tem evidente diálogo intertextual. Em A Forma da Água, no entanto, esse jogo metafórico ganha outros significados.
Dentro do universo do terror, A Forma da Água pertence ao subgênero ‘filme de monstro’, muito popular mas algo subestimado.
A criatura, vivida por Doug Jones (de O Labirinto do Fauno), mas também outros personagens importantes na trama, representam formas de monstruosidade, ou melhor, de alteridade, que de alguma forma desafiam o Estado, encarregado de vigiar e punir. A começar pela protagonista, Elisa Esposito (a britânica Sally Hawkins, de Blue Jasmine), mulher muda e solitária que trabalha como funcionária da limpeza no laboratório e se vê irresistivelmente atraída pelo homem-anfíbio, cuja solidão e incomunicabilidade nela geram empatia, identificação e, por fim, amor. Ela não está só, portanto, em sua condição de marginalidade.
O melhor amigo de Elisa, seu vizinho Giles (Richard Jenkins, de O Visitante), é um desenhista publicitário de meia-idade, gay e solitário. Tenta sobreviver fazendo trabalhos esparsos e sonha com um amor, como Elisa, enquanto assiste a musicais na televisão – o uso de uma canção de Carmen Miranda é um dos pontos altos do filme – e ouve e toca temas de amor.
A única aliada da protagonista no trabalho é Zelda (Octavia Spencer, de Histórias Cruzadas). Negra e prisioneira em um casamento sem diálogo e romantismo, julga-se refém de uma rotina que detesta, mas para a qual não vê saída. Há, ainda, o cientista Robert Hefstetler (Michael Stuhlbarg, de Me Chame pelo Seu Nome), um homem da ciência, encarregado de estudar a criatura, que guarda um segredo: tem dupla identidade, e também coloca-se numa posição limítrofe em relação ao status quo.
Em um momento no qual o governo do presidente republicano Donald Trump trava uma cruzada contra “não americanos”, e ameaça construir um muro na fronteira entre os Estados Unidos e o México, terra natal de Del Toro, é inevitável ler A Forma da Água como uma metáfora sobre o não pertencimento, a exclusão social, o estar à margem. O cineasta nos desafia a identificar os verdadeiros monstros. Se em O Labirinto do Fauno, ele falava do fascismo na Espanha de Franco, aqui a exuberância visual está a serviço de outro alvo.
Onírico, o filme é um espetáculo audiovisual no qual fotografia, direção de arte, figurinos, trilha sonora, som, edição de som e montagem se integram de forma notável para transportar o espectador a uma outra dimensão, ao mesmo tempo mágica, algo surreal, e absurdamente familiar, porque fala de um mundo de quase 60 anos atrás, mas que também pode ser o de hoje. Sally Hawkins está sublime no papel de Elisa, assim como Jenkins e Octavia. Os três, merecidamente, estão indicados ao Oscar, ela como atriz principal e eles, nas categorias de coadjuvantes.
ESCOTILHA PRECISA DE AJUDA
Que tal apoiar a Escotilha? Assine nosso financiamento coletivo. Você pode contribuir a partir de R$ 15,00 mensais. Se preferir, pode enviar uma contribuição avulsa por PIX. A chave é pix@escotilha.com.br. Toda contribuição, grande ou pequena, potencializa e ajuda a manter nosso jornalismo.