O filme Grande sertão emerge como uma empreitada cinematográfica de proporções corajosas, liderada pelo cineasta pernambucano Guel Arraes, de O Auto da Compadecida, que não só assume a direção, mas também colabora na escrita do roteiro ao lado do diretor gaúcho Jorge Furtado, de O Homem Que Copiava. Esta audaciosa adaptação do monumental romance clássico de João Guimarães Rosa, Grande Sertão: Veredas, representa uma aposta radical – e arriscada.
Ao desviar-se do cenário rural característico do escritor, Arraes transfere a narrativa para um ambiente urbano distópico extremamente violento, onde as disputas de poder frequentemente culminam na tragédia da morte de inocentes, estabelecendo assim uma conexão imediata e impactante com a realidade contemporânea. Essa mudança de cenário e contexto, inegavelmente, demonstra coragem.
Entretanto, essa ousadia não vem sem concessões perceptíveis. O filme sacrifica, em parte, o caráter reflexivo do romance em favor de sequências de ação intensa, nem sempre bem articuladas à narrativa, mantendo um tom grandiloquente que, por vezes, suprime a oportunidade de exploração das profundezas dos personagens e seus dilemas.
Embora as atuações sejam marcadas por uma visceralidade notável, estas por vezes parecem mais preocupadas em expressar emoções superficiais do que em adentrar nas complexidades psicológicas dos protagonistas, uma das marcas do livro de Rosa.
Ao se distanciar de abordagens mais convencionais e arriscar-se em uma interpretação única, Guel Arraes demonstra uma coragem artística louvável.
A narrativa simplifica os sentimentos de Riobaldo, vivido por um ótimo Caio Blat, em relação a Diadorim (Luísa Arraes, também muito bem), possivelmente numa tentativa de atrair um público mais jovem. No entanto, mesmo diante do tumulto das cenas de ação, a palavra continua a ser um elemento crucial, especialmente através das interpretações convincentes do elenco, que garantem a excelência da produção.
Ao se distanciar de abordagens mais convencionais e arriscar-se em uma interpretação única, Guel Arraes demonstra uma coragem artística inegável. Contudo, o filme não está isento de críticas. Algumas escolhas de roteiro e direção acabam por enfraquecer o resultado final, potencialmente alienando o espectador em vez de envolvê-lo completamente na trama. Assim como o livro, o filme é narrado a partir dos relatos de Riobaldo, relembrando momentos de sua vida na comunidade periférica conhecida como Grande Sertão.
Os momentos de maior impacto do filme são aqueles marcados pela violência intensa, quando os conflitos entre policiais e milícias se desenrolam, liderados por Zé Bebelo (Luiz Miranda) e Joca Ramiro (Rodrigo Lombardi), respectivamente. No centro dessa turbulência, Riobaldo se reencontra com Diadorim, amigo de infância e integrante de um dos grupos envolvidos nos embates.
Enquanto Riobaldo se vê apaixonado por Diadorim, que oculta sua verdadeira identidade, ele também enfrenta o traiçoeiro e literalmente diabólico Hermógenes (Eduardo Sterblitch, excelente), cujos planos ameaçam a estabilidade do Grande Sertão.
É inegável que, em alguns momentos, o filme assume uma estética mais próxima ao teatro filmado do que à cinematografia tradicional. Essa escolha estilística pode tanto cativar quanto distanciar o público, proporcionando uma experiência única, porém potencialmente desafiadora para os espectadores, que devem se manter atentos para não se perder no mar de palavras dos diálogos, que bebem da obra-prima de Rosa.
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