Filmes construídos em torno de protagonistas femininas fortes ainda são uma exceção. Talvez por isso que 1977 tenha entrado para a história do cinema norte-americano como um ano extraordinário. Noivo Neurótico, Noiva Neurótica (infeliz título no Brasil de Annie Hall), clássico de Woody Allen, tornou-se uma das poucas comédias a vencer o Oscar de melhor filme e legou à posteridade sua personagem-título, uma mulher independente, complexa e emancipada que se tornou marco incontornável na carreira de sua intérprete, Diane Keaton, também premiada pela Academia.
O longa-metragem de Allen competia com o fenômeno Guerra nas Estrelas, de George Lucas, mas também enfrentava na categoria de melhor filme três outros títulos cujos enredos eram protagonizados por mulheres: a comédia romântica A Garota do Adeus e o drama sobre o mundo do balé Momento de Decisão, ambos dirigidos por Herbert Ross, e o magnífico Julia, que abocanhou três estatuetas, nas categorias de melhor roteiro adaptado, ator coadjuvante (Jason Robards) e atriz coadjuvante, vencido pela britânica Vanessa Redgrave, cuja personagem dá título ao filme do veterano Fred Zinnemann.
O premiado roteiro de Alvin Sargent é baseado em Pentimento, livro autobiográfico da escritora e dramaturga Lillian Hellman, vivida no filme por Jane Fonda, em um dos melhores desempenhos de sua carreira. A trama gira em torno de seu intensa amizade com Julia, que inicia-se quando ambas eram adolescentes.
Zinnemann, diretor de clássicos como Matar ou Morrer (1052) e A um Passo da Eternidade (1953), esbanja sensibilidade ao mostrar como Lillian, uma garota judia americana, e Julia, filha de uma família aristocrática inglesa, desenvolvem uma relação profunda que desafia definições e enfrenta percalços gigantescos.
Cineasta de sutilezas, com vasta experiência em diversos gêneros, Zinnemann cria momentos de enorme tensão e dramaticidade na segunda metade do filme.
À época do lançamento, há 40 anos, discutiu-se muito se o filme de Zinnemann não teria sido, talvez, sutil demais ao evitar uma abordagem mais direta do amor vivido pelas personagens na juventude, deixando-a nas entrelinhas. Se, de fato, isso for verdade, trata-se de um pecado menor, uma vez que a ação de filme foca em outro momento da vida das duas, quando elas já não se viam há muito tempo.
Em 1937, Lillian é uma escritora em ascensão, companheira do escritor de livros policiais Dashiell Hammett (Robards, genial). Durante viagem a Paris, é procurada por um estranho que lhe pede para fazer um enorme favor para Julia: levar US$ 50 mil, em espécie, para a amiga na Alemanha de Hitler.
Julia, socialista, milita na clandestinidade contra o regime nazista e o dinheiro vai ajudá-la na causa, salvando vidas. Como é judia, Lillian teme ser descoberta em sua missão, mas aceita o desafio porque percebe que a sobrevivência da amiga também depende desses recursos, uma pequena fortuna.
Cineasta de sutilezas, com vasta experiência em diversos gêneros, Zinnemann cria momentos de enorme tensão e dramaticidade na segunda metade do filme, quando Lillian parte, de trem, rumo a Berlim. Ele dilata o tempo narrativo, extraindo de Jane Fonda um desempenho irretocável, registrado nos vários closes dessas sequências. O espectador sente, com ela, toda a angústia de não saber onde, como e quando vai reencontrar a amiga, depois de tantos anos de distanciamento. E, quando elas se veem, presenciamos uma das grandes cenas do cinema. Duas gigantes na tela.
Em um momento como o atual, no qual se fala muito em empoderamento feminino e sororidade, Julia torna-se obrigatório e merece ser descoberto pelas novas gerações, com duas protagonistas complexas, marcantes, vividas por atrizes que também fora da tela tiveram intensa atuação política. Fonda foi uma voz forte contra a participação americana na Guerra do Vietnã enquanto Redgrave, em seu discurso de agradecimento na cerimônia do Oscar, discursou em nome da causa palestina e foi vaiada por boa parte da plateia.
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