Há quem diga que o filme Mary Shelley (2018), da diretora saudita Haifaa Al-Mansour, é um retrato pobre da personagem-título porque tudo acaba sendo reduzido ao sofrimento de uma mulher e ao relacionamento dela com homens imaturos que orbitam ao seu redor. É uma leitura. Mas é difícil afirmar que seja um “retrato pobre”. Afinal, todo esse sofrimento, gradativa e cuidadosamente tecido e apresentado pelo roteiro de Emma Jensen, é capaz de compor um delicado e sensível panorama. Um delicado, sensível e competente panorama de como todas as vivências da protagonista a conduzem a uma maturidade precoce capaz de fazer com que, com apenas 18 anos, conceba uma das maiores obras da literatura mundial: Frankenstein (Ou o Prometeu Moderno).
Tradicionalmente classificado como sendo de terror, o livro, na verdade, ultrapassa (e muito) esse rótulo. Como uma das próprias personagens do filme de Haifaa Al-Mansour expõe, trata-se de um dos maiores relatos do horror que é ser desprezado, excluído, injustamente julgado pelas aparências.
Os elementos que estimulariam Mary Shelley (interpretada por Elle Fanning) a criar Frankenstein são exibidos ao longo da trama de modo a não deixar dúvidas sobre como o conjunto deles influenciaria e estimularia o potencial criativo da jovem inglesa, filha de um filósofo dono de livraria e de uma escritora que morreu dias depois de dar à luz à menina.
Com tantas informações delicadamente entrelaçadas, o filme de Haifaa Al-Mansour revela-se um sensível retrato de como a biografia e a obra de um autor podem manter profundas relações.
Assim como a mãe faleceu logo após dar a vida a Mary, ela própria perde uma filha poucos dias depois do parto. O luto intenso provoca Mary a desejar profundamente trazer a filha bebê de volta à vida. E este foi apenas um dos itens da lista de infortúnios da biografia da protagonista, lista que inclui madrasta malvada; pai que vira as costas para ela por discordar de sua escolha para casar; traições e problemas financeiros do marido, o poeta Percy Bysshe Shelley (Douglas Booth).
A literatura era um escape para essa mulher de trajetória nada fácil. Nesse contexto, o livro que se tornaria um dos maiores clássicos da literatura universal nasceu de uma provocação feita pelo Lord Byron (Tom Sturridge). Ele propôs aos amigos reunidos em sua mansão que competissem para ver quem produziria a história de terror mais assustadora. Juntando diversos fragmentos de sua trajetória e tendo na leitura e escrita constantes um terreno fértil para a produção literária, Mary Shelley cria, então, Frankenstein.
Já com a obra em mãos, as dificuldades prosseguem. São muitas as negativas das editoras para a publicação, enquanto o marido incentiva que o nome dela não apareça como autora. O filme deixa bem clara a dificuldade de inserção e aceitação de Mary no mercado editorial da época pelo simples fato de ser mulher.
Com tantas informações delicadamente entrelaçadas, o filme de Haifaa Al-Mansour revela-se um sensível retrato de como a biografia e a obra de um autor podem manter profundas relações. Ao fim da “viagem”, o espectador fica com a sensação de que visitou em profundidade os bastidores da elaboração daquele que é um dos livros mais conhecidos de todos os tempos.
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