Em 29 de janeiro de 1985, um acontecimento marcou a história da música pop: 45 estrelas da música (com algumas do cinema no meio) se reuniram em um estúdio em Los Angeles para gravar junto uma canção. Quem tomou a dianteira nesta iniciativa foi o cantor e produtor Lionel Ritchie, ao lado do empresário Ken Kragen.
Parece difícil imaginar que seria viável unir gente do calibre de Michael Jackson, Bob Dylan, Harry Belafonte, Stevie Wonder, Tina Turner e Ray Charles para que organizassem a agenda e dividissem os vocais de uma mesma música. Mas o motivo era nobre: eles iriam gravar uma música para angariar frutos em prol da luta contra a fome na África. O resultado dessa noite é exibido no documentário A Noite que Mudou o Pop, que estreou na Netflix em fevereiro.
O fruto desse encontro permanece célebre até hoje. A música “We are the world”, de Lionel Ritchie e Michael Jackson, é lembrada até hoje – embora com ares de kitsch (quem lembra de Sol cantando o “iarnuou” no BBB?). Mas aparentemente, não tínhamos nos indagado até agora sobre o quão difícil foi a logística necessária para unir tantos popstar no mesmo lugar e no mesmo horário. Sem contar, claro, a junção dos egos. E é essa história que é contada agora no filme de Bao Nguyen.
Encontro de titãs
A delícia de A Noite que Mudou o Pop é exibir os pequenos detalhes desta reunião, que só ficaram para a posteridade porque houve a preocupação em gerar muitos registros de bastidores de evento.
O trailer do filme da Netflix possa sugerir tensão e grandes conflitos, mas não passa de clickbait: o resultado mostrado é muito mais leve. A delícia de A Noite que Mudou o Pop está em exibir os pequenos detalhes desta reunião, que só ficaram para a posteridade porque houve a preocupação em gerar muitos registros de bastidores de evento.
O fio condutor da história é a fala do próprio Lionel Ritchie, que também é produtor do filme. O cantor conta como teve a ideia de produzir esse acontecimento após o sucesso de iniciativas semelhantes no Reino Unido, como o evento Band Aid, organizado por Bob Geldof em 1984, para arrecadar dinheiro aos famintos na Etiópia (Geldof, inclusive, foi levado para atuar como um consultor na gravação).
Ritchie também narra que outra inspiração foi o ativismo do cantor Harry Belafonte, que sempre batalhou pelos direitos das pessoas negras e realizou trabalhos voluntários na África. Sonhando alto, o ex-vocalista dos Commodores ligou diretamente para a maior estrela do pop da época: Michael Jackson. Ele topou a empreitada.
A Noite que Mudou o Pop também detalha como se deu a complexa logística para convencer cada uma das estrelas e engendrar para que todos pudessem estar juntos em um dia específico. Além disso, há algumas indiscrições sobre a seleção do grupo: Madonna, por exemplo, não foi convidada porque Cyndi Lauper estaria lá, e seria redundante duas cantoras com estilos semelhantes.
Outra fofoca deliciosa é que Prince não foi porque jamais toparia trabalhar em grupo. Ele se ofereceu para gravar um solo de guitarra separadamente, mas sua ideia foi rejeitada.
“Deixe seu ego lá fora”

Mas o ápice do documentário se dá justamente quando as gravações ocorrem, durante a noite de 29 de janeiro, que se estendeu até as 8 horas da manhã do dia seguinte. Quando finalmente as estrelas chegaram aos A&M Recording Studios em Los Angeles, já não havia muito como controlar o que iria acontecer.
O que vemos são interações bisbilhoteiras saborosas da convivência de gente como Stevie Wonder (uma espécie de ícone para todos), lendas vivas como Ray Charles, pessoas convidadas por oportunismo (Sheila E., que participava da banda de Prince), cantores em evidência na época como Huey Lewis, Kim Carnes e Kenny Loggins, deuses da música mundial como Bob Dylan (totalmente deslocado) e alguns totalmente aleatórios (o que Dan Aykroyd fazia lá, além de render uma piada sobre Os Caça-Fantasmas?).
Mas a amarração de toda essa confusão só foi possível por causa da mão firme de um gênio, o produtor Quincy Jones, que operou como um maestro em frente a uma orquestra. A tônica dada por Jones já se deu por uma placa colocada na entrada no estúdio, que dizia “Deixe seu ego lá fora antes de entrar”. Além disso, ele que casou as vozes em duos e teve que lidar pacientemente com a necessidade de atenção de cada super estrela presente naquele dia.
No aspecto “vergonha alheia”, a cereja do bolo está na participação de Bob Dylan, ícone recluso e meio antissocial que, de alguma forma, foi convencido a fazer parte da empreitada. Na prática, não fazia menor sentido que o folk algo desconstruído de Dylan fosse colocado ali, e ele passa boa parte visivelmente constrangido. Só consegue se soltar e finalmente cantar após a intervenção de um “encantador de serpentes” de quem todo mundo gostava, Stevie Wonder (que, aliás, também rendeu uma piada ótima sobre cegos ao lado de Ray Charles).
Não importa se você não cresceu nos anos 1980 ou se não gosta de “We are the world”. Ser um fã de música já é uma excelente razão para entrar na Netflix e assistir a A Noite que Mudou o Pop. Além de ver alguns momentos bem divertidos com seus ídolos, você pode também ter boas provas de que eles também são gente como a gente.
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