As comparações são inevitáveis e, em princípio, podem soar injustas, mas não pelos motivos mais óbvios. Nós, estupendo segundo longa-metragem do cineasta norte-americano Jordan Peele (de Corra!), em cartaz nos cinemas brasileiros desde a semana passada, traz, sim, ecos não muito disfarçados de clássicos do suspense (e terror), como Tubarão (1975), de Steven Spielberg, e Os Pássaros (1963), de Alfred Hitchcock, porém está muito longe de ser um pastiche de citações, ou mesmo uma homenagem.
As semelhanças começam pelo fato de que, a exemplo desses clássicos, a maior parte da trama de Nós se passa em uma idílica, quase arquetípica, cidade litorânea dos Estados Unidos, tão bela e aparentemente pacífica que parece ser o último lugar do planeta onde algo terrível possa acontecer. Até aí, nada de muito novo: a dicotomia éden/ inferno está muito presente na cinematografia americana.
A série Twin Peaks, de David Lynch, que o diga! Tentar fazer de Peele um sucessor, um novo Hitchcock ou Spielberg, no entanto, é banalizá-lo, o vendo como um criador derivativo e não um artista original, o que, tudo leva a crer, ele seja, ao fazer um filme tão bom ou até melhor do que Corra!.
O diretor, também autor do roteiro, faz do ensolarado balneário de Santa Cruz, entre o mar e um lago paradisíaco, repleto de gaivotas (como Os Pássaros) o refúgio perfeito para quase qualquer ser vivente, ainda mais para uma família tão aparentemente feliz como os Wilsons.
O pai, Gabe (Winston Duke, de Pantera Negra) é um sujeito bonachão, engraçado e orgulhoso de sua casa de verão, do barco novo com o qual poderá navegar pelas águas do lago. Adelaide, ou Addie (Lupita Nyong’o, extraordinária), a mãe, é mais contida, séria, e conduz a família com rigor, mas também doçura.
O casal tem dois filhos: Zora (Shahadi Wright Joseph), uma típica adolescente que prefere seu celular a interagir com o resto do clã, e Jason (Evan Alex), que veste uma camiseta de Tubarão e se esconde por trás de uma máscara o tempo todo, como se estivesse a se proteger de algo que não sabe quem o que é. Logo descobrirá.
Nós parte, certamente, do mito do Doppelgänger, originário de lendas germânicas, nas quais existe um monstro ou ser fantástico que tem o dom de representar uma cópia idêntica de uma pessoa que ele escolhe ou que passa a acompanhar obsessivamente.
A tensão de Addie tem uma razão, apresentada no preâmbulo do longa-metragem. Em 1986, quando era menina, foi a um parque de diversões em Santa Cruz e, em um momento de distração dos pais, a garotinha, com uma maçã do amor nas mãos e vestindo uma camiseta de “Thriller”, grande sucesso de Michael Jackson, vai parar em uma das atrações: uma casa de espelhos labiríntica sugestivamente batizada de Find Yourself (Encontre a si mesmo).
Lá dentro, Addie de fato tropeça em si mesma, mas não se trata apenas de uma imagem refletida. A experiência a deixa traumatizada por muitos anos e retornar à cidadezinha, depois de tantos anos, e com os filhos, a angustia profundamente, pois jamais contou ao marido do encontro com esse outro eu, que jamais conseguiu compreender, ou esquecer.
Já instalados no seu bangalô, os Wilsons, à noite, são surpreendidos por uma “visita” inesperada: uma família, idêntica a eles, assim como a menina da casa de espelhos da infância de Addie. Eles os espreitam, vestidos com macacões vermelhos e tesouras em punho. É o início de um pesadelo.
Nós parte, certamente, do mito do Doppelgänger, originário de lendas germânicas, nas quais existe um monstro ou ser fantástico que tem o dom de representar uma cópia idêntica de uma pessoa que ele escolhe ou que passa a acompanhar obsessivamente. Peele se apropria desse mito para fazer um comentário corrosivo sobre os Estados Unidos de hoje.
Fala de questões raciais, sem dúvida – os Wilsons encontram na praia uma família de amigos, brancos, os Tylers, mais ricos e infinitamente mais fúteis do que eles – a esposa, Kitty (Elisabeth Moss, de O Conto da Aia), passa o tempo todo a beber e parece obcecada com a aparência, com envelhecer. É a imagem da angústia.
Mas o diretor vai além disso. Parece falar da América que Donald Trump insiste em querer trazer de volta. “Nós somos americanos”, diz a cópia de Addie, a única capaz de falar. Os demais apenas se comunicam por grunhidos. Nós soa como uma fascinante alegoria sobre uma nação subterrânea, violenta e pré-verbal, que se ressente dos rumos tomados pelo país. Sente-se traída, e quer revanche, vingança.
Os Wilsons, felizes, bem-sucedidos, integrados, insultam seus iguais, privados das mesmas chances e oportunidades. Eles são Obama, enquanto seus duplos são Trump, ressentidos, ávidos por seu pedaço do sonho americano, a ser conquistado a tesouradas. Nós fala de tudo isso e ainda mais. É um grande filme.
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