Infelizmente, Donald Trump é um tema recorrente na nossa cultura. E por conta disso, o interesse sobre sua vida – e sobre tudo o que pode ocorrido para torná-lo um autocrata sem quaisquer escrúpulos – tende apenas a crescer nos próximos anos. É nesse brecha que parece entrar O Aprendiz, o filme do diretor iraniano-dinamarquês Ali Abbasi (de Holy Spider), uma cinebiografia que visa justamente revelar a gênese de um monstro contemporâneo.
O termo monstro talvez não seja exagerado aqui. A ideia de O Aprendiz é comprovar que a formação da personalidade de Trump (papel vivido por Sebastian Stan, de Pam & Tommy, que recebeu uma indicação ao Oscar de melhor ator) se deu por seu caminho ter cruzado em algum momento com o do controverso advogado Roy Cohn (aqui vivido por Jeremy Strong, o astro de Succession, e que também foi indicado a melhor ator coadjuvante no Oscar).
Roy Cohn, de acordo com o filme, teria sido um mentor ou mesmo um segundo pai para Donald Trump, que era constantemente humilhado por um pai severíssimo. Em sua busca por conquistar o respeito com o seu progenitor (o que só poderia ocorrer caso ele bolasse algum negócio que lhe desse muito dinheiro e salvasse as empresas da família da falência), ele acaba cruzando com Cohn.

Como bom alpinista social, ele consegue criar uma amizade (bastante estranha) com o advogado, que lhe dá lições que seriam valiosas pelo resto da vida. Em suma, são “três regras” que fariam o empresário Donald Trump se tornar admirado por milhões de pessoas: sempre atacar, nunca admitir erros e sempre proclamar sua vitória mesmo que estiver derrotado (os três princípios de Cohn seriam depois usados por Trump em seu famoso livro A Arte da Negociação, em uma espécie de roubo intelectual).
Ao “adotá-lo”, Cohn vai aos poucos dando acesso ao novo pupilo aos meandros do business em Nova York, que se sustenta, sobretudo, pela chantagem com autoridades políticas e práticas que passam longe de qualquer flerte com a ética e com o interesse público. O mundo é uma selva, declara Cohn, e a única forma que há de se dar bem nessa nova ordem mundial é atacando antes de ser atacado.
Neste contexto, o Donald Trump de Sebastian Stan é retratado como um carreirista meio apatetado, bastante trapaceiro, mas eficiente, que vai perdendo suas facetas humanas para se tornar cada vez mais um personagem sem escrúpulos. Suas poucas características mais ternas (como uma suposta paixão por uma modelo russa chamada Ivana Trump, aqui vivida pela atriz búlgara Maria Bakalova) aos poucos vão morrendo – a ponto de ele não se importar quando seu irmão mais velho, alcoólatra, vai até a sua mansão pedindo ajuda.
‘O Aprendiz’: um Donald Trump com poucas novidades
Boa parte da atração do público por O Aprendiz se centraliza no duelo de interpretações travado entre Sebastian Stan e Jeremy Strong. Ambos parecem sublimemente entregues aos seus papéis. Stan está sem dúvida dedicado a repetir todos os trejeitos midiáticos de Trump, incluindo a cabeleira e a indefectível cor laranja, além do traquejo peculiar de sua fala.
O que se vê no longa de Ali Abbasi é um ataque permanente à figura de Trump, que não é visto com alguma humanidade em nenhum aspecto.
Strong, por outro lado, apresenta a intensidade performática que já havia se destacado nos anos em que ele viveu o complexo Kendall Roy de Succession – o que fazia seus colegas de colegas darem entrevistas assustados de que Strong havia realmente se tornado Kendall nos bastidores. Obviamente, não há muito referencial público para avaliar o seu Roy Cohn (que não é tão célebre quanto Donald Trump), mas há claras pistas de que o tom monocórdio do ator no filme provém de muito estudo da persona que o inspira.
Não por acaso, Jeremy Strong quase levou o Oscar pelo papel. Aqui ele encara um personagem com múltiplas nuances: um advogado conservador que passa por cima de tudo e todos, e que resume o Estado como um grande perigo comunista, mas é afeito a uma vida pessoal devassa que precisa ficar nos bastidores.
Quando surge a suspeita de que estaria com AIDS, ele é forçado a dar uma entrevista na televisão negando sua homossexualidade. Em seu período de queda, ele é traído por Trump – o que, paradoxalmente, sugere que seu pupilo aprendeu bem a lição dada pelo mestre.
O que se vê no longa de Ali Abbasi é um ataque permanente à figura de Trump, que não é visto com humanidade em nenhum aspecto. O que acontece, também, é um tom que beira o vingativo: a ideia de O Aprendiz é de escrachar o inimigo público de todas as formas possíveis. Além de ser retratado como bobo e inseguro, Trump passa por humilhações em cenas que servem apenas para ridicularizá-lo (como na que vai cobrar aluguel de pessoas pobres e eles o recebem jogando água) até se tornar finalmente o monstro ganancioso, capaz de estuprar a própria esposa quando se desinteressa por ela.
Como resultado, o filme acabou enfrentando imensas dificuldades de distribuição no mercado cinematográfico e várias ameaças legais do próprio Trump (ao fim, o longa conseguiu fazer a distribuição por conta de uma campanha de financiamento coletivo).
Obviamente, há razões suficientes para pintar Donald Trump com todas essas cores. No entanto, no caso de uma cinebiografia, o ônus acaba sendo o da concretização de um filme sem qualquer novidade acerca da figura que retrata. Meio chato e forçado como o próprio Trump.
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