O longa-metragem O Lodo, filme do experiente diretor Helvécio Ratton, transita em um terreno incômodo, a partir da constituição de uma atmosfera algo surreal e opressora típica da vida urbana, contida por inúmeras burocracias. A sinopse da obra pode lembrar os romances de Kafka: um sujeito bem comum, chamado Manfredo (papel de Eduardo Moreira), que trabalha em uma companhia de seguros avaliando riscos, se sente desanimado e procura um psiquiatra. Chegando lá, ele encontra um médico meio bizarro, Dr. Pink (Renato Parara).
Em uma sessão tipicamente psicanalítica (com direito a divã e paciente deitado de costas para o terapeuta), ele é convidado a olhar para dentro de si de maneira desconfortável, pois há um “lodo” dentro dele que precisa sair. Insatisfeito com os métodos e o tratamento proposto, Manfredo vai embora e deixa claro que não irá mais voltar. Mas o psiquiatra e sua secretária começam uma verdadeira perseguição ao homem, requisitando que ele vá às sessões, e passam a tornar sua vida em um inferno.
Baseado em um conto do escritor e jornalista mineiro Murilo Rubião, O Lodo tem como grande qualidade a constituição de um ambiente tão angustiante quanto a história pede.
A partir daí, um contexto que mistura fantasia e realidade se levanta no filme. Há algo que Manfredo parece esconder de si mesmo, mas que o dr. Pink insiste que ele olhe – caso contrário, o lodo irá “transbordar” por algum lugar. As pistas sobre o seu “segredo” parecem estar no cenário (as revistas Playboy espalhadas pela casa, os quadros eróticos no quarto de Manfredo), nos personagens (o “menino” que o chama de pai) e nos devaneios que ele tem, em que enxerga um crucifixo numa parede, seguido de uma mulher nua.
Mas além do óbvio sentido psicanalítico (a emergência involuntária de algo que se esconde no inconsciente, agora manifesto de forma física), há outra leitura presente em O Lodo, que diz respeito a como o contexto externo (a burocracia do trabalho, a pressão jurídica feita pelo terapeuta cobrando as sessões) impede que o sujeito possa encarar a si mesmo, pois está sempre apagando os incêndios da vida diária (como a cobrança do chefe, o colega que tenta passar a perna numa promoção).
Um elenco de atores impecáveis
Baseado em um conto do escritor e jornalista mineiro Murilo Rubião, O Lodo tem como grande qualidade a constituição de um ambiente tão angustiante quanto a história pede. O cenário é o centro de São Paulo, onde Manfredo mora (em um apartamento cenográfico impecavelmente montado para representar a vida chata do personagem), trabalha e mantém seus casos.
Ele deixa claro que é um solteirão que não tem interesse em casar com ninguém, mas que sempre cultiva algum rolo com mulheres – o que, de certo modo, sugere uma dificuldade grande em formar vínculos. Trata-se aqui de um sujeito extremamente comum, na meia idade, mas ainda assim acometido por uma vaidade mais típica da solteirice. O personagem, por exemplo, pinta o cabelo de escuro para esconder os grisalhos.
Um ponto de virada na trama é quando chega à sua casa Epsila, uma mulher meio invasiva que subentendemos se tratar de sua irmã. Ela vem acompanhada do filho – que, embora seja tratado por menino, é um homem adulto e interpretado por Cláudio Márcio (que vive o Roque na série O Rei da TV, sobre Silvio Santos). É Epsila que dará um empurrão para que Manfredo lide com sua saúde, que se degrada a cada dia que passa.
O filme de Helvécio Ratton se abrilhanta por conta da performance dos atores e atrizes – em boa parte, oriundos do Grupo Galpão, considerado uma das grandes companhias teatrais do país. Eduardo Moreira, Inês Peixoto (que vive Epsila) e Rodolfo Vaz (que vive Xavier, o colega mau caráter) são ou passaram pelo grupo, além da grandiosa Teuda Bara, uma das fundadoras do Galpão, e que faz uma ponta como a funcionária do personagem principal.
As múltiplas camadas do “lodo” (cujo significado é relativamente explicado no final) que corre dentro de Manfredo colocam o filme de Ratton como uma obra provocativa e que, de maneira deliberada, parece mais querer incomodar do que resolver o incômodo.
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