Os cinemas brasileiros acabaram de estrear a adaptação cinematográfica de Pérola, peça escrita pelo dramaturgo Mauro Rasi (1949-2003) que fala sobre sua mãe, e que fez muito sucesso nos anos 1990 com a interpretação de Vera Holtz. Na nova versão da história, dirigida por Murilo Benício, Pérola é vivida pela atriz Drica Moraes. Escotilha compartilha a seguir duas críticas, feitas pelos jornalistas Maura Martins e Paulo Camargo, que trazem visões diferentes sobre o filme.
Maura Martins: ‘Pérola’ é um enternecedor retrato de uma família interiorana

Em 1995, o dramaturgo Mauro Rasi marcou o teatro brasileiro ao estrear Pérola, peça cômica e dramática em que falava de sua mãe, interpretada de maneira magistral por Vera Holtz. Foi um sucesso absoluto. Agora, 28 anos depois, a história escrita por Rasi (falecido em 2003) está de volta ao grande público no filme Pérola, com direção de Murilo Benício.
É uma oportunidade e tanto para apresentar às novas gerações o trabalho desse escritor cuja obra foi marcada pelo retrato do cotidiano das famílias interioranas paulistas, com um olhar sempre terno e saudoso, ainda que engraçado. Nascido em Bauru, Mauro Rasi retratou em Pérola uma figura peculiar: uma mulher leve, divertida e algo conservadora cujo sonho da vida é ter um “palácio com piscina”. Alguém com a capacidade de entoar com a maior alegria as mais tristes das canções.
Por sorte, o filme de Murilo Benício faz jus à força dessa trama que rodou o país. Ao invés de Vera Holtz, Pérola agora é vivida por Drica Moraes – que, segundo contou em entrevista, pediu licença à colega para viver o papel. E o que se vê em cena é uma nova Pérola tão reluzente quanto a versão original de Vera. Seu sotaque interiorano puxado, seus trejeitos e jeito de falar, bem como os aspectos carismáticos de sua personalidade, conseguem transportar sua Pérola direto ao coração dos espectadores.
“Pérola é delicado ao explorar a complexidade dos sentimentos familiares, esclarecendo o quanto a afetividade efusiva de Pérola com o filho convive com suas emoções conflitantes.”
Maura Martins
Embora explorado sob um contexto familiar mais amplo (que fala, por exemplo, dos conflitos entre a mãe e o filho gay, que ela se recusa a reconhecer como tal), Pérola é sobretudo uma grande celebração à personalidade festiva e peculiar da mãe de Mauro Rasi. Ela vive bem com o marido, Vado (Rodolfo Vaz, também excelente), e ambos se divertem bastante tomando caipirinhas no quintal com as irmãs de Pérola, enquanto a mãe delas teima em não morrer e vender suas casinhas (todas as cenas em que se remete à figura da progenitora são hilárias).
Felizes no seu mundinho, há uma certa dificuldade geracional em reconhecer a estranheza dos filhos. Elisa (Valentina Bandeira) está apaixonada pelo carola Danilo (papel do comediante Jefferson Schroeder), gerando certo descontentamento na mãe. Mas o conflito maior ocorre com o filho Mauro (Leonardo Fernandes), que se sente limitado pelo pouco que Bauru lhe oferece.
Seu escape se dá no cinema e sobretudo na poesia. Pérola é delicado ao explorar a complexidade dos sentimentos familiares, esclarecendo o quanto a afetividade efusiva de Pérola com o filho convive com suas emoções conflitantes. Ela é orgulhosíssima do filho, ao mesmo tempo que sempre o lembra que poesia não dá dinheiro. Quando Mauro muda para o Rio de Janeiro, Pérola e Vado visitam ele e seu namorado, são extremamente simpáticos, mas jamais legitimam a natureza do seu relacionamento.
O filme de Murilo Benício configura como uma obra que se equilibra perfeitamente entre a comédia e a emoção. É capaz de nos entregar uma narrativa sólida e comovente em que, além da performance espetacular dos atores (as irmãs de Pérola também estão impagáveis), nos envolve por meio de uma cenografia kitsch construída de forma competente, e que é capaz de nos transportar aos anos 60 e 70 em que a história é situada.
Murilo Benício – que foi grande amigo de Mauro Rasi – declarou em entrevista que o dramaturgo tinha o sonho de transformar sua peça em filme. Pode-se intuir que certamente Rasi se sentiria bastante comovido com o resultado desse trabalho, que faz jus ao seu texto marcante que até hoje faz falta no teatro e na televisão.
Paulo Camargo: ‘Pérola’ se perde entre o melodrama e a comédia

“Embora Pérola sugira que o personagem, ainda na infância, tinha inclinações gays, ao fazer um belo laço em torno do pescoço de um bicho de pelúcia da irmã, Elisa, o tema é abordado com o freio de mão puxado.”
Paulo Camargo
Um dos melhores atores em atividade no Brasil, Murilo Benício fez sua estreia como cineasta em 2018, com uma inventiva adaptação da peça O Beijo no Asfalto, clássico de Nelson Rodrigues. O filme é uma criativa leitura metalinguística que explora os limites entre a linguagem teatral e a do cinema, os borrando para discutir o caráter de espetáculo da realidade.
Em seu segundo longa-metragem, a comédia dramática Pérola, Benício volta a se aproximar do teatro, adaptando para a tela o texto homônimo do dramaturgo paulista Mauro Rasi, gigantesco sucesso nos anos 1990, com Vera Holz, inesquecível, como a personagem-título, inspirada na mãe do autor, que morreu em 2003. Quem vive o papel da protagonista na tela grande é Drica Moraes.
Em sua leitura de Pérola, Benício parece buscar inspiração no cinema do espanhol Pedro Almodóvar, ao tentar mesclar as cores do melodrama com as da comédia. A homenagem ao diretor de Tudo Sobre Minha Mãe e Fale com Ela também se faz presente na direção de arte, que recorre a cores fortes, pulsantes, na construção do set da casa da família, que flerta propositalmente com o kitsch.
Assim como a peça autobiográfica de Rasi, o filme explora a complexa relação entre mãe e filho, jovem aspirante a escritor, gay e preso às amarras de uma criação interiorana cercada de afeto, mas também de segredos familiares, e meias verdades. Pérola, por sua vez, é retratada como uma figura maior do que a vida, exagerada, amante de caipirinhas e que tem um grande sonho: construir uma piscina, símbolo de afluência e ascensão social, no quintal da casa, ainda que a obra se arraste por anos.
O desempenho de Drica Moraes, uma atriz muito talentosa, tem, em comum com o de Vera Holz na versão teatral, o trânsito entre o drama e a comédia. Algo, no entanto, incomoda na atuação de Drica, que se entrega de corpo e alma ao papel. Enquanto a composição de Vera no palco era orgânica, autêntica, do sotaque ao gestual, a Pérola do filme é calculada milimetricamente, resultando algo próximo da caricatura. Ainda assim, é uma atuação de fôlego, marcante.
Benício tenta extrair o melhor de seu elenco, bastante afinado, mas, talvez, por não conhecer tão de perto a realidade interiorana que retrata, o filme, em alguns momentos traz um olhar exótico, ainda que afetuoso, sobre a atmosfera paulista dos anos 1960 e 1970. Incomoda, também, a forma como o roteiro, assinado por Jô Abdu e Adriana Falcão, e a direção de Murilo Benício lidam com a homossexualidade reprimida de Mauro, alter ego de Rasi, vivido por Leonardo Fernandes, bastante correto.
Embora Pérola sugira que o personagem, ainda na infância, tinha inclinações gays, ao fazer um belo laço em torno do pescoço de um bicho de pelúcia da irmã, Elisa, o tema de sua orientação sexual, ao longo da narrativa, é abordado com o freio de mão puxado. Talvez porque, a despeito de ser respeitoso, carregue um olhar heteronormativo, inseguro, em relação ao assunto. Soa falso, pouco à vontade e pisando em ovos, ao contrário da peça.
Benício demonstra habilidade na condução dos atores, isso é inegável, e ousa ao não se render à tentação de simplesmente “filmar a peça”. Tem um olhar inquieto, que perscruta e busca explorar esse território entre o teatro e cinema. Mas, pesar de ter seus bons momentos, o filme não se resolve em sua dupla busca pelo melodrama e pela comédia. Perde-se entre um e outro.
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