Um Teatro Guaíra completamente lotado recebeu com entusiasmo o muito esperado monólogo Ficções, espetáculo protagonizado por Vera Holtz e que se baseia no livro Sapiens – uma breve história da humanidade, de Yuval Noah Harari. A Escotilha estava lá com dois de seus jornalistas, Maura Martins e Paulo Camargo, que aqui neste espaço vão compartilhar suas respectivas visões do espetáculo, que não são opostas, mas complementares.
Maura Martins: “Um encontro inesquecível com uma atriz magistral”
A expectativa em torno de Ficções fez jus no resultado final, com um público completamente mobilizado pela presença e pela performance de Vera e do músico Federico Puppi, que atuam a partir de texto elaborado por Rodrigo Portella.
Durante quase duas horas, os quase 3 mil presentes no Guairão foram convidados a adentrar neste ambiente particular em que nada mais existe além de uma grande pedra, como um meteoro que colidiu com a Terra, e de uma mulher com semblante messiânico que veste roupas que remetem, talvez, ao que imaginamos que os personagens bíblicos usavam. Tal como um Moisés, Vera carrega consigo um cajado e nos leva, de maneira muito divertida, a fazer um passeio pela evolução da nossa espécie.
O que não significa que a peça tenha aquele didatismo meio piegas dos discursos que explicitamente tentam nos ensinar coisas. Muito pelo contrário. Adentramos, na verdade, no terreno da comédia, gênero em que Vera Holtz consolidou uma boa parte da sua carreira. Sua personagem na peça, de certa forma, é ela mesma, tal como a conhecemos a partir das grandes mídias: uma atriz de teatro, com ar despachado e um adorável sotaque levemente caipira.
Mais que uma peça, Ficções adquire ares de performance e de show musical, em uma sintonia perfeitamente ajustada entre Vera e Federico, que em vários momentos cantam e tocam juntos. Alguns dos conceitos trazidos em Sapiens – como o princípio humano da colaboração a partir de comandos abstratos – são explorados de maneira genial. Vera estabelece um jogo com a plateia para que bata palmas sempre que ela exibir os peitos. O resultado é engraçadíssimo.
Somos humanos, acima de tudo, por conta de nossa capacidade de criar coisas que não existem
Mas a premissa central do best-seller de Yuval Noah Harari é explorada a partir de um ângulo específico: a presença da linguagem como constituição do homo sapiens. Somos humanos, acima de tudo, por conta de nossa capacidade de criar coisas que não existem – daí o título “ficções”.
Mas se nada existe (as religiões, os governos, as nações) e tudo foi imaginado, como aguentar viver? De alguma forma, esta reflexão perpassa o monólogo e se enriquece por conta do humor do texto e da própria performance magistral da artista. Vera recebe ligações telefônicas o tempo todo de um suposto marido, que também se chama Yuval (uma mera coincidência, brinca) e que está atormentado por questões existenciais. Por que ter um filho em um planeta atulhado com 6 bilhões de pessoas? Como ser mulher em um mundo em que a sua própria espécie tenta te destruir?
Obviamente, são temas incômodos em essência, mas que encontraram no texto de Rodrigo Portella uma forma magnífica de serem levados ao público. A plateia, inclusive, é parte importante do espetáculo, seja a partir das interações presenciais, seja a partir de uma interpretação feita por Vera Holtz de vários tipos característicos de espectadores – incluindo, de forma hilária, o sujeito muito religioso que evita o teatro para não ter que pensar.
Tocando em questões densas com humor muito característico, Ficções se revela um encontro inesquecível com uma atriz magistral que, sem dúvida, está entre as maiores que temos.
Paulo Camargo: “O espetáculo quer se libertar do livro que o originou, para ganhar o mundo”
Há pelo menos dois Yuval Noah Harari em cena na peça Ficções. Um de verdade, o autor israelense do best-seller internacional que serve de ponto de partida para o texto, muito bem alinhavado e criativo. O outro Harari, ficcional, é o marido de Vera, a protagonista da montagem, que, por sua vez, não se confunde exatamente com a atriz Vera Holtz, a estrela que vemos sobre o palco.
Essa multiplicação de Hararis pode ter a ver com a discussão sobre gênero, que embora não seja tema central do espetáculo, o permeia, e lateja o tempo todo das quase duas horas da peça. É inevitável constatar que a protagonista dialoga com, quando não a questiona, uma visão masculina patriarcal da história do planeta e, portanto, da humanidade, na qual parece aprisionada.
É inevitável constatar que a protagonista dialoga com, quando não a questiona, uma visão masculina patriarcal da história do planeta
Não à toa, no desfecho de Ficções, a personagem anuncia ao Harari marido, e talvez até ao autor, que está de partida, em busca de uma narrativa só sua, não planejada, e que não esteja sujeita a nenhum deles. Ela quer se perder, mergulhar em si mesma, para, quem sabe, contar um dia outra história, de um outro ponto de vista.
Dessa tensão entre a reverência à fonte do texto encenado e da vontade dele se descolar, se libertar, ainda que se apropriando de muitas reflexões por ele propostas, nasce Ficções.
O espetáculo, se não é o que podemos chamar de “adaptação livre”, é muito, também, a respeito desse querer se libertar do livro, e do olhar patriarcal, que o originou, para ganhar o mundo.
Esse desejo está presente na irreverência com que Vera conduz não apenas suas falas, e como ela nos apresenta os personagens múltiplos que encarna, que no fundo são ela mesma, uma mulher em busca de um discurso, e de uma história, que seja, de fato, sua, ainda que efêmera, como tudo e todos no mundo.
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