O que faz um filme ser de terror? Há já uma longa tradição dentro do gênero que nos mostra que muitos dos momentos mais aterrorizantes estão não em monstros ou no sobrenatural, mas nos fantasmas do cotidiano que ficavam adormecidos até que algo os acordasse. No forte longa-metragem Propriedade, de Daniel Bandeira, o terror está se aproximando dos personagens – mas justamente daqueles que acreditavam ter todas as condições de ficar alheios a ele.
O início do filme já nos dá a pista de que o cenário é o pânico brasileiro. Uma gravação de celular nos mostra que Tereza (Malu Galli) passou por um momento de intensa violência, e está traumatizada. Em seguida, ela é focada em seu apartamento de classe alta. Está claramente catatônica. Seu marido, Roberto (Tavinho Teixeira) parece ter uma solução: irá levá-la para uns dias na fazenda da família, no interior de Pernambuco, num carro de luxo que a recém foi blindado.
Esse é só o começo de um conflito tenebroso que se levanta quando o casal chega ao local. Em outra cena, sabemos que os trabalhadores da fazenda acabam de descobrir que ela foi vendida e que eles terão que encontrar outro lugar para viver e oferecer seus serviços. Sairão, como se diz no popular, com uma mão na frente e outra atrás. Mas se eles que produziram toda a riqueza da propriedade, não seriam eles os donos?
Terror e luta de classes
Em Propriedade, o terror está se aproximando dos personagens – mas justamente daqueles que acreditavam ter todas as condições de ficar alheios a ele.
De duração relativamente curta, o impactante longa-metragem de Daniel Bandeira consegue criar uma tensão que se estende até o fim. Ele se inicia justamente no trauma de Tereza e vai se desdobrando em uma série de cenas extremamente violentas que se somam a esse embate, entre patrões e empregados.
O roteiro sofisticado constrói uma trama que nos leva ao incômodo, e à certeza de que é difícil pensar em categorias fáceis a essas pessoas. Tereza, à primeira vista apenas uma vítima da violência urbana, tem culpa e deve pagar por sua condição de privilegiada? E os trabalhadores, tomados pela raiva por uma vida de injustiças, que perpassa para além de suas próprias existências, têm direito à revolta cega que manifestam?
Não há respostas fáceis para nenhuma dessas questões. E, como Propriedade trata de esclarecer, as posses que diferenciam uma classe da outra são benesses, mas também prisões. Isso se evidencia no tema central do filme, quando Tereza fica presa dentro de seu carro blindado, mas não consegue sair com ele para proteger a própria vida. O que a salva é também o que a acorrenta ao local.
A partir desse mote do carro cercado, o filme ganha ares de filme de terror. Os trabalhadores que tentam atacá-la, em vários momentos, lembram zumbis – o que, por sua vez, gera consonância com as várias análises que pontuam que filmes com os mortos-vivos se referem a todo tempo aos excluídos sociais.

Mas aqui, no caso, os supostos “zumbis” têm uma consciência de classe que se sustenta pela raiva: eles trabalharam a vida toda e perderam muitas coisas por algo que não é seu. Em determinada cena, uma líder do grupo, vivida pela experiente atriz Zuleika Ferreira, coloca isso em palavras: cada um que está ali comprou um pouco da fazenda com seu trabalho, com seu corpo.
Vencedor de vários prêmios (entre eles, de Melhor Montagem no Festival do Rio e de Melhor Direção, Melhor Figurino, Melhor Fotografia, Melhor Direção de Arte e Melhor Desenho de Som no Festival de Aruanda), Propriedade está entre os mais perturbadores (e excelentes) filmes da nova safra do cinema brasileiro.
ESCOTILHA PRECISA DE AJUDA
Que tal apoiar a Escotilha? Assine nosso financiamento coletivo. Você pode contribuir a partir de R$ 15,00 mensais. Se preferir, pode enviar uma contribuição avulsa por PIX. A chave é pix@escotilha.com.br. Toda contribuição, grande ou pequena, potencializa e ajuda a manter nosso jornalismo.