“Muitas pessoas querem que você continue lutando”, diz Martha (Tilda Swinton) em O Quarto ao Lado, primeiro filme em inglês do cineasta espanhol Pedro Almodóvar. A constatação é feita com uma calma devastadora, e a voz carregada de uma serenidade que só aqueles que já vislumbraram o inevitável conseguem alcançar. Enquanto compartilha sua visão, amarga e nua, sobre a luta contra o câncer com Ingrid (Julianne Moore), sua fala corta como lâmina afiada. “Se você vence, é vista como uma heroína, mas se perde… bem, talvez o problema tenha sido não lutar o suficiente.” É uma dessas frases que desmonta qualquer ilusão de esperança heroica, arrancando o véu romântico que tantas vezes envolve as narrativas sobre doenças terminais.
Para uma repórter de guerra como Martha, que passou anos em meio à morte e à destruição, essa clareza brutal parece uma conclusão lógica. No fundo, ela nos lembra que há batalhas que não foram feitas para vencer – apenas para suportar.
Ingrid, que recentemente expôs seus próprios medos da morte em seu mais recente livro, sente-se abalada pela franqueza quase cruel da amiga, uma verdade dura demais para quem ainda tenta encontrar sentido na vida. Mesmo assim, movida por um senso de dever e amizade, ela promete estar presente durante o tratamento experimental de Martha, reconhecendo que, naquele momento sombrio, a amiga precisa de mais do que remédios ou prognósticos – precisa de companhia.
Mas o verdadeiro choque vem mais tarde em O Quarto ao Lado, vencedor do Leão de Ouro no Festival de Veneza 2024, em uma noite aparentemente banal no Lincoln Center, em Nova York, quando Martha revela seu plano devastador: ela decidiu pelo suicídio assistido antes que o câncer roube o que resta de sua dignidade, e quer Ingrid ao seu lado quando o momento derradeiro chegar.
A profundidade desse pedido não pode ser subestimada – é um fardo emocional colossal, e também o símbolo de uma amizade impenetrável entre duas mulheres, construída sobre a compreensão do que significa, de fato, estar presente na vida de alguém.
Almodóvar, em sua marca registrada, oferece aqui um banquete visual que apenas ele poderia proporcionar.
Almodóvar, em sua marca registrada, oferece aqui um banquete visual que apenas ele poderia proporcionar. Seus figurinos impecáveis, cores vibrantes e cenários meticulosamente compostos se estendem desde o coração pulsante de Manhattan até o sossego bucólico do interior de Nova York. O diretor de fotografia Eduard Grau (de Direito de Amar), estreando sua colaboração com o diretor, transforma a paisagem americana em um espaço ao mesmo tempo brutal e sereno, um pano de fundo ideal para o drama íntimo que se desenrola. E, claro, não faltam as obsessões temáticas que permeiam a obra de Almodóvar: a ligação visceral entre mães e filhas, a sensualidade que parece sempre à espreita, e o impulso inato de desafiar as normas sociais que nos restringem.
Desta vez, é o suicídio assistido que ocupa o centro da narrativa – um tema que ainda hoje permanece cercado de tabus, quando não tratado como crime. Almodóvar não apenas explora esse território, mas o reivindica, advogando pelo direito de escolha em um mundo que parece determinado a nos privar de qualquer controle, até mesmo sobre nossos corpos e destinos.
A estreia de O Quarto ao Lado no Brasil coincide com a morte do poeta e filósofo Antonio Cícero, na Suíça, onde recorreu ao suicídio assistido, lá permitido por lei, para abreviar seu sofrimento com a doença de Alzheimer.
‘O Quarto ao Lado’: abordagem mais contida

Nos primeiros 30 minutos de O Quarto ao Lado, os diálogos soam um pouco didáticos, mecânicos demais, assim como os pouco orgânicos flashbacks, porém Swinton e Moore, com suas atuações magnéticas e uma notável química fluida, mantém o filme envolvente até a trama decolar. A participação de John Turturro, em um papel menor mas memorável, como o ex-amante cínico de ambas as protagonistas, injeta um humor sombrio que é ao mesmo tempo um alívio e um lembrete da complexidade das relações humanas.
Almodóvar opta, em O Quarto ao Lado, por uma abordagem mais contida, introspectiva, evitando a intensidade melodramática que marca grande parte de sua obra. O Quarto ao Lado é uma obra corajosa, especialmente pela maneira sensível com que trata o tema do suicídio assistido. Em vez de se concentrar na controvérsia, Almodóvar escolhe focar na pessoalidade e nas consequências emocionais para aqueles que permanecem. É um filme profundamente humano, que aborda com delicadeza as escolhas que fazemos diante da morte iminente.
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