Mais recente filme do aclamado diretor pernambucano Kleber Mendonça Filho, de Bacurau, Retratos Fantasmas pode, à primeira vista, parecer uma homenagem à memória e ao papel desempenhado por ela na construção da nossa identidade. No entanto, o filme transcende essa impressão inicial. O cineasta se recusa a se entregar a uma nostalgia excessiva que romantiza o passado e o desconecta do presente; pelo contrário, ele desafia essa perspectiva, levantando questionamentos e problematizando essa visão.
Os primeiros momentos do documentário, que está chegando aos cinemas brasileiros, nos mergulham profundamente nas recordações de um apartamento no bairro Setúbal, em Recife, que serviu como morada do cineasta por quase quatro décadas. Essas lembranças evocam a presença da historiadora Joselice Jucá, mãe de Kleber, já falecida, e nos apresentam aos espaços domésticos frequentemente utilizados como cenários em outras obras do diretor, como o curta-metragem Eletrodoméstica (2005) e o longa-metragem O Som ao Redor (2012).
Além das memórias associadas a esse território íntimo, permeado de recordações afetivas, o filme adentra, depois, como num sonho desperto, as lembranças dos antigos cinemas de rua no centro de Recife, muitos dos quais encerraram suas atividades, foram abandonados ou transformados em igrejas evangélicas, lojas ou estacionamentos. Essa narrativa, simultaneamente local e universal, ultrapassa as fronteiras da capital pernambucana e ecoa em diversas cidades, tanto no Brasil quanto em outras partes do mundo, onde a especulação imobiliária e mudanças econômicas resultaram na decadência das áreas urbanas centrais. Espaços culturais e de convívio social foram apagados diante da voracidade do desenvolvimento.
Kleber Mendonça Filho, por meio de suas criações cinematográficas e de seu engajamento pessoal, expressa uma inquietação constante com a descaracterização de Recife, promovida pela especulação imobiliária e pela ganância capitalista. Nesse contexto, espaços culturais como as salas de cinema, que têm um papel crucial na construção da identidade da população e do caráter, como ressalta o diretor, foram substituídos por complexos sem identidade em shoppings.
O cineasta evita cair na armadilha do saudosismo vazio e mais banal. Kleber não separa o passado como uma instância idealizada e sublime; ele encara esse período como uma parte intrínseca de nossa vivência e busca decifrar suas raízes no presente. Para essa empreitada, ele se aprofunda nas complexas engrenagens econômicas, sociais e políticas que gradativamente tornaram os cinemas de rua economicamente inviáveis e dispensáveis.
Kléber, entretanto, é também um contador de histórias algo melancólico, cuja paixão pelo cinema, que o levou a se tornar crítico e, mais tarde, cineasta, floresceu nas antigas salas de cinema, nos majestosos ambientes que frequentemente projetaram os filmes que ele carrega em seu imaginário.
Ainda durante seus tempos de estudante de Jornalismo nos anos 1990, Kléber registrou os últimos dias do Cine Art Palácio, uma das salas de exibição mais emblemáticas do centro de Recife, construída nos anos 1930 à margem do Rio Capibaribe, em um projeto que contava com o patrocínio da UFA, principal companhia produtora cinematográfica da Alemanha nazista.
A narrativa de Retratos Fantasmas é conduzida em primeira pessoa pelo próprio diretor, mantendo um tom de voz contido e uniforme, embora nuances de melancolia, ironia e até mesmo sarcasmo e indignação possam ser percebidas.
O futuro cineasta captou preciosos depoimentos do Seu Alexandre, um projecionista, em sua rotina de trabalho. Essas imagens do passado, um tanto fantasmagóricas, são incorporadas magicamente à narrativa do documentário. As histórias do veterano não apenas transbordam sua paixão pelo espaço, por seu ofício, mas também trazem uma generosa dose de realismo.
Nos meses de verão, Seu Alexandre chegava a trabalhar sem camisa e se deitava no chão da cabine de projeção para se refrescar, uma vez que não havia sistema de refrigeração no recinto. Ele também compartilha com Kléber sua irritação durante os quatro meses de exibição de O Poderoso Chefão, de Francis Ford Coppola. “Eu não aguentava mais ouvir aquela música”, referindo-se à trilha sonora de Nino Rota.
Retratos Fantasmas desenrola-se sob a condução em primeira pessoa pelo próprio diretor, conservando um tom de voz comedido, sem grandes alterações de tom, ainda que matizes de melancolia, ironia e até mesmo sarcasmo e indignação transpareçam. Kleber não sobrecarrega sua subjetividade, mas sim nos faculta a visão dos fantasmas que permeiam sua obra, transitando habilmente entre o formato documental e uma espécie de criação autoficcional, onde ele assume tanto o papel de personagem quanto de narrador.
Essa proposição é reforçada por um epílogo surpreendente, com toques de cinema fantástico, no qual o diretor aparenta se lançar em uma jornada de retorno após sua imersão em memórias, que, a esta altura, se entrelaçam também às nossas. Estejam preparados: Retratos Fantasmas é um filme que se instala e continua a reverberar dia após dia.
ESCOTILHA PRECISA DE AJUDA
Que tal apoiar a Escotilha? Assine nosso financiamento coletivo. Você pode contribuir a partir de R$ 15,00 mensais. Se preferir, pode enviar uma contribuição avulsa por PIX. A chave é pix@escotilha.com.br. Toda contribuição, grande ou pequena, potencializa e ajuda a manter nosso jornalismo.