Existe uma camada de filmes que parecem ganhar densidade com o tempo. Não porque envelheçam, mas porque o mundo ao redor insiste em permanecer (ou até se agravar) nas mesmas contradições que esses filmes expõem. É o caso de Saneamento Básico, o Filme (2007), de Jorge Furtado, que chega novamente aos cinemas em 2025, atualizado não no que mostra — a precarização dos serviços públicos, a criatividade na adversidade, o humor como estratégia de sobrevivência —, mas no modo como seguimos reconhecendo o país no espelho que ele nos oferece.
O ponto de partida continua simples e, ao mesmo tempo, genial: uma pequena comunidade no interior da Serra Gaúcha descobre que há verba pública disponível para a produção de um filme — mas não para construir uma fossa séptica, de que tanto precisam. A solução? Fingir que estão produzindo um filme de ficção científica para, com isso, resolver o problema sanitário da localidade.
O humor afiado, a estrutura metalinguística e o olhar atento para as contradições do Brasil são marcas reconhecíveis do cinema de Jorge Furtado, um dos mais importantes e inventivos cineastas brasileiros contemporâneos. Gaúcho, roteirista por excelência e cofundador da Casa de Cinema de Porto Alegre, Furtado construiu uma obra que, desde os anos 1980, se caracteriza pelo uso crítico da linguagem audiovisual. Não por acaso, seu curta-metragem Ilha das Flores (1989) tornou-se não apenas um clássico do cinema brasileiro, mas também uma referência mundial em narrativa ensaística, ironia e desmontagem das estruturas da sociedade de consumo.
Se em Ilha das Flores a desconstrução se dá pela montagem frenética, pela narração irônica e pelo uso sistemático de conceitos e definições, em Saneamento Básico Furtado radicaliza sua proposta de outra maneira: colocando o próprio fazer cinematográfico no centro da narrativa. O filme escancara os bastidores da produção audiovisual, revelando que o cinema — assim como a cidadania — é uma construção coletiva, cheia de remendos, ajustes, aprendizados e negociações.
Revê-lo hoje não é só reencontrar uma comédia afiada, mas também observar, em estado ainda bruto, dois dos maiores nomes do cinema brasileiro contemporâneo no que parece um raro instante de leveza antes do salto definitivo para o estrelato global. Fernanda Torres, que mais tarde se tornaria indicada ao Oscar de melhor atriz por Ainda Estou Aqui, e Wagner Moura, premiado como melhor ator em Cannes por O Agente Secreto, estão aqui absolutamente magníficos, num jogo cênico que revela tanto a inteligência do texto de Furtado quanto a precisão de seus intérpretes.
Fernanda Torres, como Marina, entrega uma atuação que é, ao mesmo tempo, realista e autoconsciente. Ela não interpreta apenas a líder comunitária que decide conduzir o projeto do falso filme; ela encarna também a roteirista acidental, a mulher que aprende, enquanto faz, o próprio vocabulário da encenação. Sua performance habita aquele lugar raríssimo entre a contenção e o excesso: basta um olhar enviesado, um suspiro carregado de ironia, e a piada se arma — não só para o riso, mas também como comentário social.
Ao lado dela, Wagner Moura constrói um Joaquim que é quase o oposto dos personagens pelos quais seria depois celebrado no mundo. Onde Pablo Escobar (Narcos) é puro controle, e Marighella é intensidade política, Joaquim é dúvida, hesitação, desconforto. E é justamente nesse desconforto que reside sua graça. Moura acerta ao fazer de seu personagem uma espécie de avatar do brasileiro médio: meio perdido, meio esperto, sempre pronto a aprender na marra como funciona o jogo — seja o da burocracia, seja o do cinema, seja o da vida.
A força de Saneamento Básico está, claro, no humor, mas também na maneira como o filme desarma qualquer glamour em torno da própria linguagem cinematográfica. Tudo é posto às claras: escrever roteiro, filmar, gravar som, editar. O que poderia ser um bastidor vira narrativa, e a gambiarra se torna estética. Não por acaso, a câmera de Furtado assume um registro quase didático — frontal, limpa, sem firulas —, como se dissesse o tempo todo: vejam, fazer cinema é isso. E, como a própria comunidade descobre, viver também é isso — improvisar, negociar, construir soluções com o que se tem à mão.
A força de Saneamento Básico está, claro, no humor, mas também na maneira como o filme desarma qualquer glamour em torno da própria linguagem cinematográfica.
Essa abordagem, aliás, é coerente com a trajetória de Jorge Furtado, cuja obra sempre esteve comprometida em desvendar os códigos da comunicação — seja no curta, no documentário, na ficção ou na televisão. Sua filmografia, que inclui também títulos como O Homem Que Copiava (2003) e Meu Tio Matou um Cara (2004), explora justamente essas fronteiras entre o contar histórias e o refletir sobre como essas histórias são construídas.
Ao rever Saneamento Básico hoje, talvez a constatação mais desconcertante seja perceber que sua crítica segue intacta — senão mais urgente. O roteiro, que parecia comentário pontual sobre o Brasil dos anos 2000, soa, em 2025, quase como documento histórico de uma crise que nunca se resolveu. O filme não envelheceu; fomos nós que não conseguimos superar os problemas que ele escancarava.
E se, em seu relançamento, o filme ganha uma nova camada — a de ser também testemunho da trajetória de Fernanda Torres e Wagner Moura, que dali partiriam para carreiras de alcance global —, ele permanece, antes de tudo, como uma ode à criatividade coletiva, ao fazer com pouco e, sobretudo, ao rir como forma de resistência.
No fim das contas, Saneamento Básico segue sendo sobre cinema. E sobre como, no Brasil, até fazer cinema começa, muitas vezes, com o desejo muito simples de construir uma fossa.
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