Gênios são pessoas imperfeitas, muitas vezes desprezíveis. Essa é uma das premissas de Tár, longa-metragem escrito e dirigido pelo cineasta estadunidense Todd Field. Em cartaz nos cinemas brasileiros, o filme traz a australiana Cate Blanchett no papel-título, regente e compositora multipremiada, reconhecida mundialmente, mas também narcisista, cruel e manipuladora. É uma personagem tão complexa, bem delineada, que muitos acreditaram, em um primeiro momento, que não fosse ficcional.
Depois de dar a Blanchett a Copa Volpi de melhor atriz no último Festival de Veneza e de vencer inúmeros prêmios de associações críticos, incluindo o de melhor filme do prestigiado New York Critics Circle, Tár está indicado a seis Oscar: filme, direção, roteiro original, atriz, fotografia e montagem. De quebra, recebeu elogios rasgados de Martin Scorsese, um dos grandes do cinema mundial. O entusiasmo do diretor de obras-primas como Taxi Driver e Touro Indomável faz sentido.
Tár é ousado e nada condescendente com o público, porque não teme causar desconforto, inquietação, assim como sua protagonista. Lydia Tár é abertamente lésbica, exímia pianista, maestra da consagrada da Orquestra Filarmônica de Berlim, compositora premiada de trilhas sonoras. Mantém um relacionamento estável com Sharon (Nina Hoss), violinista alemã, com quem tem uma filha, porém, aos poucos a trama vai revelando, faz uso de seu poder e carisma para seduzir mulheres mundo afora, muitas vezes de forma abusiva, egoísta, para seu próprio deleite, a começar pela própria assistente, Francesca (Noémie Merlant).
Todd Field, que também é ator e conhecemos como o pianista misterioso de De Olhos Bem Fechados, derradeiro filme de Stanley Kubrick, não tem uma filmografia extensa como diretor, porém o conjunto de sua obra é respeitável. Foi indicado ao Oscar de melhor filme e roteiro adaptado por seu longa de estreia, o ótimo drama familiar Entre Quatro Paredes (2001), estrelado por Sissy Spacek, Tom Wilkinson e Marisa Tomei. Voltou a disputar a estatueta pelo roteiro de Pecados Íntimos (2007), perturbadora radiografia da classe média suburbana nos Estados Unidos, com elenco encabeçado por Kate Winslet, Patrick Wilson e Jennifer Connely. Agora retorna à cena com Tár, seu trabalho mais maduro.
Tár é ousado e nada condescendente com o público, porque não teme causar desconforto, inquietação, assim como sua protagonista.
Além de ser um extraordinário estudo de personagem, no qual se esmera em nos revelar, em cenas e sequências primorosamente construídas, toda a complexidade de Lydia Tár, Field nos entrega uma espécie de fábula sobre como é praticamente impossível dissociar a genialidade da personagem de seu narcisismo destrutivo, patológico. No início do filme, há uma sequência exemplar nesse sentido.
Ao ministrar uma master class em regência em Nova York, na Julliard, uma das melhores e mais afamadas escolas de música e teatro dos Estados Unidos, Tár destrói, diante dos demais estudantes, um jovem aluno que diz não ter interesse pela obra do compositor barroco alemão Johann Sebastian Bach, por ele ser um homem branco, europeu, cis e heterossexual. Ao questionar o identitarismo defendido pelo rapaz, o que até pode fazer algum sentido se pensarmos na importância de Bach na História da Música, Lydia o humilha publicamente sem piedade, se esquecendo que está em um ambiente de aprendizado, numa escola de ensino superior.
Tár também discute poder. Em um momento em que se debate e denuncia muito a sujeição de mulheres ao assédio físico, sexual e emocional exercido por homens em posição de superioridade, o filme ousa ao colocar uma mulher lésbica, exceção em um mundo ainda tão masculino como o da música erudita, onde ela é chamada de maestro, na posição de abusadora. Lydia acaba emulando um comportamento tóxico normatizado entre homens, e é exposta.
Field nos coloca dentro da cabeça de Tár, de seu psiquismo que aos poucos vai se deteriorando. É brilhante a opção de mostrar como ela, uma mulher da música e do silêncio, vai se desestruturando a partir de sons que invadem sua intimidade: sinos, buzinas, sirenes, campainhas, gritos, o som de um diapasão.
Com fortes chances de vencer seu terceiro Oscar – os outros dois foram por O Aviador, de coadjuvante, e Blue Jasmine, de atriz principal – Cate Blanchett entrega um desempenho magistral. As modulações de sua voz, sua linguagem corporal construída nos mínimos detalhes, suas expressões faciais, tudo nos conduz à subjetividade atormentada e em ebulição de Lydia Tár, que de tão absurda parece de verdade.
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