Premiado no último Festival de Gramado, o longa-metragem Tia Virgínia, de Fabio Meira (que já havia dirigido o elogiado As Duas Irenes) propõe uma espécie de visita a uma família aparentemente comum, mas carregada de mágoas. Escotilha compartilha a seguir duas críticas, feitas pelos jornalistas Maura Martins e Paulo Camargo, que oferecem suas leituras sobre o filme.
Maura Martins: Vera Holtz brilha em ‘Tia Virgínia’
O constrangimento das reuniões de família é um tema recorrente na literatura e no cinema. O pano de fundo, quase sempre, é o mesmo: o alto teor de amargura que se esconde na obrigatoriedade das reuniões festivas, nas quais todos os presentes precisam fingir estar felizes pelo reencontro.
De alguma forma, este é o mote trazido em Tia Virgínia, filme dirigido por Fabio Meira e encabeçado por um grande elenco feminino (as veteranas Vera Holtz, Arlete Salles e Louise Cardoso). Mas penso que há algo a mais que se ilumina pela espécie de trabalho solo exercido por Vera, que está entre as grandes artistas que temos hoje no Brasil, e encarna aqui o papel que dá nome ao filme.
No longa-metragem, o Natal se aproxima, e Virgínia começa a se preparar para chegada de suas duas irmãs com suas famílias. Ela habita o casarão do clã ao lado da mãe centenária (vivida por Vera Valdez), uma idosa que já não se sabe se está ou não ali entendendo tudo, ou existe apenas em estado vegetativo. Vai ficando claro que foi para Virgínia – que nunca casou, teve filhos, e aparentemente não deu certo na vida – que restou, por inércia, a tarefa de cuidar da mãe.
Ao chegar, Vanda (Arlete Salles) e Valquíria (Louise Cardoso) claramente trazem aquela simpatia condescendente de quem vê a irmã como alguém com menos voz – afinal, ela supostamente não precisa se preocupar com nada além de acompanhar a mãe. O papel de cuidadora é quase abordado como um benefício a que Virgínia deveria ser grata.
Mas, talvez diferente do que ocorre em boa parte das famílias, Virgínia – em sua solidão rodeada pela mãe e sua empregada grávida, Soraia (Amanda Lyra) – está cada vez menos propensa a disfarçar seu descontentamento.
Mas, sem dúvida alguma, a grande atração do filme é a performance estupenda de Vera Holtz, que ilumina cada cena em que aparece.
Com uma direção de arte impecável, que nos consegue transpor à memória de tantas casas que permanecem quase intocadas com o passar de gerações. Tia Virgínia consegue fazer um retrato sensível da vida de muitas mulheres que, mesmo criadas sob a égide do patriarcado, tornaram-se (e ainda se tornam) o centro de suas famílias.
Há elementos sutis presentes no longa de Fabio Meira que evidenciam isso o tempo todo. Para começar, há a tríade, incorporada por Vera, Louise e Arlete, que, de uma forma ou outra, parecem ser os pilares de seus pequenos núcleos. Virgínia cuida da mãe e da casa; Vanda tem um marido, Tavares (Antonio Pitanga), já senil, que bebe escondido sempre que pode e representa uma figura meio infantil; e Valquíria vem para o Natal sem o marido (que, subentende-se, é um alcoólatra) e com o filho, um médico recém formado (e que pede dinheiro emprestado para a tia).
A figura masculina, portanto, ou inexiste ou é claramente negativa. As filhas referem-se o tempo inteiro com carinho à presença do pai morto – mas vão deixando claro o quanto ele era duro e provavelmente abusador. Já o neto médico é constantemente comparado ao avô no jeito e na aparência física, a ponto de passar a vestir suas roupas – e logo vai se notar que ele também não é flor que se cheire.
Às mulheres de Tia Virgínia, sobra tudo: as responsabilidades, as dores, as mágoas. Com os homens alheios a tudo, resta a elas lidar com os ressentimentos que guardam umas com as outras, e que vão se espelhando a partir de coisas pequenas, como a decisão sobre quem ocupará qual quarto para as festas de fim de ano.
Mas, sem dúvida alguma, a grande atração do filme é a performance estupenda de Vera Holtz (que venceu o Festival de Gramado pelo papel), que ilumina cada cena em que aparece. Inicialmente contida (embora sua aparência sempre altiva jamais a deixe ocupar um papel de “normalidade”), ela aos poucos vai deixando transbordar a loucura de quem já não aguenta mais. E é o revelar desse verdadeiro eu de Virgínia, lapidado pelo talento de uma grande atriz, que torna este longa-metragem um belo e original estudo sobre as relações familiares.
Paulo Camargo: ‘Tia Virgínia’ dialoga com o teatro, mas é bom cinema
Vera Holtz, que hoje vive o ápice de sua carreira, brilhando no palco e no cinema, domina a tela como a personagem-título.
Em determinada altura de Tia Virgínia, longa-metragem de Fábio Meira, em cartaz nos cinemas, a protagonista, esplendidamente vivida por Vera Holtz, deixa escapar que seu sonho era ser atriz, mas nunca pode concretizá-lo. Os pais conservadores não permitiram.
Sua única, e inesquecível, experiência no palco foi em uma montagem amadora de A Casa de Bernarda Alba, de Frederico Garcia Lorca. A citação ao clássico da dramaturgia espanhola não é gratuita. Há muitos paralelos entre Virgínia e Adela, uma das personagens centrais de Lorca.
As duas mulheres vivem, de alguma forma, trancadas dentro de casa, por conta da submissão à figura materna, ao dever à família. Esse sufocamento vai crescendo até explodir numa espécie de catarse em ambas as obras.
Virgínia, muito bem construída por Meira, é uma mulher pela metade, que passou toda uma vida a servir a família, esquecendo-se dos próprios desejos e vontades. Vera Holtz, que hoje vive o ápice de sua carreira, brilhando no palco e no cinema, domina a tela como a personagem-título. Ela vai do humor, muitas vezes cáustico, ao drama de cores bastante intensas. A ação se passa durante as festas de fim de ano, quando as famílias têm a obrigação de passar por cima de desavenças, por vezes acumuladas por toda uma vida. Mas não é o que ocorre aqui.
Virgínia vive em uma cidade do interior, cuidando da mãe, que sofre de demência senil, e recebe a visita as irmãs Vanda e Valquíria, interpretadas magistralmente por Arlete Salles e Louise Cardoso, e suas famílias.
O roteiro de Fabio Meira pode por vezes soar teatral – afinal, tem como referência um clássico da dramaturgia mundial. Mas não se engane: Tia Virgínia é cinema dos bons. A câmera do diretor, assim como seu roteiro, afiadíssimo, explora de forma cortante as relações familiares que aos poucos vão não apenas se revelando, mas também desmoronando no lar da família.
Por conta disso, a direção de arte de Ana Mara Abreu é fundamental ao filme. A casa é, ao mesmo tempo, um espaço carregado de afeto e um fosso de ressentimentos, de não ditos, berço e túmulo. Tia Virgínia venceu, no último Festival de Gramado, os prêmios de melhor atriz (Vera Holtz), roteiro, direção de arte, design de som, prêmio da crítica e uma menção honrosa pela atuação de Vera Valdez, que vive a matriarca cujo silêncio demente pontua toda a narrativa.
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