Adam, interpretado pelo ator irlandês Andrew Scott, é o protagonista do belo e melancólico Todos Nós Desconhecidos. Ele vive em um prédio de apartamentos nos arredores de Londres e passa seus dias tentando escrever um roteiro, vestindo um suéter feio e assistindo TV. Da sua janela, ele observa a cidade, mas se sente apartado dela, como sempre se sentiu separado de tudo na vida. Adam é gay, teve uma infância trágica e é escritor, um tipo de pessoa que seu pai sempre disse que sabia menos sobre o mundo do que qualquer outro ser humano. A solidão é algo natural para ele.
O filme, dirigido por Andrew Haigh, é vagamente baseado no romance japonês Estrangeiros, de Taichi Yamada, mas Haigh, conhecido por explorar a emocionalidade íntima de homens queer em seus trabalhos anteriores, como a série Looking e o longa-metragem Weekend, moldou a história para algo mais próximo de sua própria visão, ocidental e urbana.
Haigh nos deixa incertos sobre o que estamos assistindo nos primeiros 30 minutos do filme. Às vezes, parece que Adam é realmente o último homem sobre a face da Terra. Mas tudo muda quando ele conhece Harry (o também irlandês Paul Mescal), um vizinho no mesmo prédio, que bate à sua porta com uma garrafa de uísque.
Parece que Adam e Harry são os únicos habitantes do edifício, o que é insólito e pode ser uma chave possível para compreender a aura de mistério em que a trama está imersa.
Adam é educado, mas não deixa Harry entrar. Ele está confortável com sua solidão, talvez com medo de mudá-la. Mas sua vida começa a se alterar quando ele se vê em um trem rumo aos subúrbios, tentando escrever sobre sua infância. E quando ele permite que Harry entre, mais tarde, em sua casa e em sua vida.
‘Todos Nós Desconhecidos’: sonho ou alucinação?
No coração de Todos Nós Desconhecidos está a magnífica interpretação de Andrew Cooper.
Haigh é um cineasta tremendamente lírico, e Todos Nós Desconhecidos se desenrola em um espaço que parece um sonho, uma alucinação, e tem fortes conotações psicanalíticas.
Trata-se de uma história fantasmagórica, espectral, à qual é preciso se entregar, caso contrário, assisti-lo pode ser uma experiência frustrante. Não é, portanto, para cartesianos, que buscam explicações racionais para tudo. Resumo, sem maiores detalhes: em uma de suas incursões pelo bairro onde viveu quando criança, Adam reencontra seus pais, que morreram em um acidente de carro quando ele tinha 12 anos. Os dois, vividos por Claire Foy e Jamie Bell, têm a mesma idade que tinham quando a tragédia ocorreu.
No coração de Todos Nós Desconhecidos está a magnífica interpretação de Andrew Scott. Cada movimento que ele faz e a cada fala e olhar, ele revela uma alma ansiando pelo impossível: ver seus pais e saber como eles se sentiriam sobre quem ele é agora.
O maior sentido de sua imensa solidão, no entanto, vem de encontros e experiências que poderiam ter ocorrido, mas não aconteceram: a viagem que ele e seus pais não fizeram, as árvores de Natal que não enfeitaram, as conversas que não tiveram sobre sua sexualidade, o conforto que seu pai nunca lhe deu quando ele era um menino chorando sozinho em seu quarto.
A possibilidade de um grande amor, por sua vez, é representada por Harry, que se instala como um posseiro no coração de Adam. Também ele traz nos olhos muito azuis os estigmas da solidão – a interpretação sutil, introspectiva de Mescal, é notável.
“Sempre me senti um estranho na minha própria família”, diz Harry para Adam em determinada altura do filme. Essa frase dói, porque fala da realidade de muitas e muitas pessoas LGBTQIA+ mundo afora. É um sentimento mais comum do que a maioria de nós admite, mesmo para nós mesmos, mesmo quando estamos cercados por pessoas que nos amam.
Nós somos, sabemos, estranhos em nossas famílias, em nossas vidas, em nossas cidades, em nossos próprios corpos, e o que tentamos é nos mover do estranho para algo que se aproxime do familiar. Às vezes, conseguimos.
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