Em Trago Comigo, novo longa de Tata Amaral, o verdadeiro protagonista é a memória e sua implacável finitude. Mas aqui se pensa não apenas na memória na perspectiva individual de cada um, mas na memória coletiva de um país e de que forma ela se perde (ou não) junto com os personagens que a carregam. Esta discussão é trazida a partir da vida de Telmo (Carlos Alberto Riccelli), um diretor de teatro aposentado que uma vez atuou como guerrilheiro na luta armada contra a ditadura. Este período – com suas dores e lembranças – está engavetado nos cantos empoeirados de sua memória, a qual ele não pretende (nem consegue) resgatar.
Mas é exatamente isso o que ocorre quando Mônica (Georgina Castro), uma atriz com quem ele tem um caso, resolve – por puro ciúme – descobrir quem é a misteriosa Lia que Telmo evita rememorar. E, de fato, ele lembra de pouca coisa, pois praticamente a apagou junto às memórias traumáticas da resistência à ditadura. Sendo assim, uma série de acasos acaba por instigar Telmo a montar uma nova peça que o ajude a desvendar as peças do seu esquecimento e lhe traga possivelmente algum tipo de paz.
Obviamente, a paz não poderá ser resgatada facilmente, e uma série de impasses – alguns mais convincentes, outros pouco verossímeis – começa a criar uma jornada tortuosa na criação da peça. Os atores são jovens, afastados temporalmente do Brasil que Telmo narra em suas palavras. Logo, eles começam a distorcer as lembranças do diretor em sentidos imprevistos: por exemplo, o ator de televisão Miguel Jarra (Felipe Rocha) insiste em descrever seu personagem como “terrorista” e não como “guerrilheiro”. A delicadeza da precisão das palavras, sugere o filme, é um dilema central a todos que se propõem ao problema delicado de olhar para o passado a partir do presente.
Trago Comigo tem como mérito, portanto, a intenção de problematizar os limites da memória e, mais do que isso, discutir sobre quais seriam as narrativas possíveis para que a história seja (re) contada.
Trago Comigo tem como mérito, portanto, a intenção de problematizar os limites da memória e, mais do que isso, discutir sobre quais seriam as narrativas possíveis para que esta história seja (re) contada. Há pelo menos três linguagens que se entrecruzam no filme: a da ficção, com os atores que encenam a história de outrem sem o compromisso inegociável com o real; a do teatro, quando os atores que interpretam atores buscam reconstituir os episódios históricos no palco; e a linguagem do real, atrelado ao formato documentário, que vem à cena com os depoimentos de sobreviventes da tortura da ditadura são convidados a resgatar suas lembranças frente à câmera de Tata Amaral.
E, curiosamente, é aí que o filme toma força. Isso ocorre nas falas quase calmas daqueles que efetivamente passaram pela tortura e relembram – aparentemente, sem grandes emoções – episódios de absoluto terror, como Amelia de Almeida Teles, militante do Partido Comunista que foi torturada pelo comandante Brilhante Ustra e foi exibida, após ser espancada, aos filhos pequenos que, sem entender os hematomas do corpo da mãe, perguntavam por que ela estava azul.
A ingenuidade da percepção da criança, rememorada na fala impassível da mãe, parece mais forte e comovente que qualquer encenação dramática de uma cena de tortura no teatro. Conforme descreveu a jornalista Eliane Brum, o mais chocante do filme é a tarja obscena que aparece na boca de cada pessoa torturada que menciona o nome de um torturador, o qual não pode dizer sob risco de processo, pois tais pessoas não responderam por seus crimes. O não-dito é o verdadeiro grito nesta narrativa da memória.
Deste modo, mesmo tendo fragilidades enquanto filme (como uma espécie de suspense sem clímax sobre qual teria sido a razão do destino da misteriosa Lia das memórias de Telmo), Trago Comigo traz uma oportunidade de resgatar certos detalhes sobre a história da ditadura, que aos poucos se esvai junto com aqueles que vivenciaram. Como outras narrativas recentes já mostraram – como o brilhante e comovente Ainda Estou Aqui, de Marcelo Rubens Paiva, que resgata as memórias do pai Rubens Paiva, deputado desaparecido e morto pelos militares – não há ficção e/ou dramatização que supere a força da voz daqueles que estiveram lá. O filme parece dizer: ainda não encontramos estruturas mais fortes para recontar o mundo do que a fala suscitada pela memória do real.
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