O que significa caminhar à deriva pelo cinema de Agnès Varda? Essa pergunta, que já nasce indisciplinada, é o convite sutil que o 14º Olhar de Cinema – Festival Internacional de Curitiba lança ao espectador em sua mostra Olhar Retrospectivo. Intitulada “Derivas por Varda”, a seleção de dez obras da cineasta belga-francesa — seis longas e quatro curtas — é menos um exercício de celebração do cânone e mais uma proposta de aproximação sensível à artista que talvez tenha sido, ao mesmo tempo, a mais moderna e a mais afetuosa das cineastas do século XX.
Agnès Varda, falecida em 2019, nunca fez filmes para ocupar lugares seguros na história. Seu cinema não se deixa fixar por categorias fáceis. Era, ela mesma, uma figura em movimento: fotógrafa antes de ser cineasta, artista plástica antes de qualquer rótulo, documentarista de si mesma, ficcionista da realidade. Se há um eixo possível para seus filmes — e para esta mostra — ele passa pelo gesto do desvio. Varda filmava com o corpo inclinado para o lado, prestando atenção naquilo que o cinema tradicional, centrado, esquecia de olhar: as ruas, os cantos, os rostos anônimos, os afetos quebrados, os objetos descartados
Agnès Varda, falecida em 2019, nunca fez filmes para ocupar lugares seguros na história. Seu cinema não se deixa fixar por categorias fáceis.
A mostra, cuidadosamente organizada sob a curadoria do festival, propõe um passeio por essas margens — não como espaço de exclusão, mas como território de invenção. A ideia de “deriva”, que nomeia o recorte, se manifesta tanto nos personagens de seus filmes quanto na própria construção de suas obras, que deslizam entre a ficção e o documentário, o ensaio e o autorretrato, o político e o íntimo.
A travessia começa com La Pointe-Courte (1955), primeiro longa-metragem de Varda, realizado quando ela tinha apenas 27 anos. Ambientado em uma vila de pescadores no sul da França, o filme entrelaça duas narrativas: a de um casal em crise que tenta reavaliar sua relação e a dos habitantes locais que enfrentam dificuldades econômicas e disputas com as autoridades sanitárias. A escolha de Varda por atores profissionais nos papéis centrais e moradores reais como coadjuvantes já aponta para sua futura experimentação com os limites da ficção. O filme é, também, um prenúncio do que viria a ser a Nouvelle Vague, movimento que ela antecedeu sem jamais ter pertencido plenamente.
Na sequência, <em”>Cléo das 5 às 7 (1962) marca talvez o ponto mais conhecido de sua filmografia. Acompanhando, em tempo quase real, duas horas na vida de uma jovem cantora que espera o resultado de um exame médico, o filme se desenrola como um ensaio sobre o olhar — o olhar da cidade, dos homens, do espelho, e também o olhar que Cléo aprende a construir sobre si mesma. O tempo em Varda não é uma sucessão de eventos, mas um campo de tensão entre o que se espera e o que se vive. E é nesse intervalo que a personagem (e o espectador) se transforma.
Mas é nos curtas-metragens que o olhar da cineasta encontra talvez sua forma mais concentrada. Em A Ópera-Mouffe (1958), ela documenta poeticamente o cotidiano de um bairro popular de Paris, filtrado pela percepção de uma mulher grávida. O filme, que mistura cenas reais com imagens oníricas, encena a maternidade como um estado alterado de consciência, no qual o corpo e o mundo se fundem em sensações cruas. Em Saudações aos Cubanos (1964), por outro lado, a montagem frenética de fotografias tiradas em uma viagem à Cuba pós-revolução revela uma cineasta engajada, mas jamais panfletária. Varda celebra, sim, a potência de um povo, mas não deixa de registrar seus gestos ambíguos e suas contradições.
Agnès Varda foi uma artista que reinventou o documentário como forma de afeto. Em Tio Yanco (1967), ela visita um parente distante — artista como ela, exilado como ela — e transforma esse reencontro em performance lúdica. Em Documentira (1981), filme de ficção com ressonâncias autobiográficas, ela narra a solidão de uma mãe francesa em Los Angeles, enfrentando um divórcio e o exílio emocional. Aqui, Varda faz do deslocamento geográfico uma metáfora para o desenraizamento afetivo — e o faz com uma delicadeza que evita qualquer dramatismo excessivo.
Há ainda em sua obra um profundo engajamento com as questões do feminismo, sem jamais reduzir personagens ou conflitos a slogans. Uma canta, a outra não (1977) é exemplar nesse sentido. O filme acompanha a amizade entre duas mulheres ao longo de 14 anos, atravessando o Maio de 68, os embates pela legalização do aborto e os dilemas das relações amorosas e da maternidade. É um musical político, mas também uma carta de amor às mulheres e às suas escolhas — e às suas contradições.
Nos anos 2000, já consagrada como uma espécie de “avó” da Nouvelle Vague, Varda ressurge com vigor inesperado. Os Catadores e Eu (2000) é um documentário sobre pessoas que vivem do que encontram no lixo, mas também sobre o próprio ato de filmar — de coletar imagens, de reaproveitar histórias, de resistir à obsolescência. Varda se insere no filme como personagem, como montadora e como espectadora de si mesma. Essa autorreflexividade alcança sua forma mais completa em As Praias de Agnès (2008), talvez sua obra mais radicalmente pessoal. Nesse filme-memória, ela revisita sua infância, seus filmes, seu amor por Jacques Demy, suas fotografias, seus gatos e suas praias — sempre as praias, espaços de transição, de fronteira e de liberdade.
Agnès Varda, como poucas figuras no cinema moderno, compreendeu o gesto de filmar como uma escuta, como um modo de estar no mundo com atenção e carinho. Ao contrário do cinema masculino hegemônico, que frequentemente busca impor um ponto de vista, Varda cria espaços onde diferentes perspectivas podem coexistir. Seus filmes não nos dizem o que pensar; nos convidam a pensar junto.
Em tempos de discursos polarizados e olhares apressados, reencontrar sua obra é um exercício necessário de descompressão e abertura. A mostra “Derivas por Varda” nos convida não apenas a assistir aos filmes, mas a caminhar por eles — como quem percorre uma cidade desconhecida, aberto ao que pode surgir nas esquinas, nos becos, nas vitrines, nos rostos.
SERVIÇO | 14º Olhar de Cinema – Festival Internacional de Curitiba
Quando: 11 a 19 de junho de 2025
Onde: MON, Cine Passeio, Cine Guarani, Teatro da Vila, Cinemateca de Curitiba e Ópera de Arame
Quanto: R$ 8 (meia-entrada), R$ 16 (inteira).
Algumas sessões são gratuitas. Programação completa e ingressos podem ser adquiridos no site oficial do Olhar de Cinema e app oficial (iOS e Android). Classificação indicativa e sessões com acessibilidade (audiodescrição e Libras) disponíveis na programação.
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