Em dezembro deste ano, estreia nos Estados Unidos o filme Tão Forte e Tão Perto, filme do cineasta britânico Stephen Daldry (de As Horas e O Leitor) baseado no romance Extremamente Alto e Incrivelmente Perto, do escritor norte-americano Jonathan Safran Foer (de Tudo Se Ilumina). Trata-se da história de Oskar Schell (Thomas Horn), um garoto de 9 anos que perdeu seu pai (Tom Hanks), de quem era muito próximo, no atentado ao World Trade Center, do 11 de Setembro.
Dois anos mais tarde, Oskar vive com a mãe (Sandra Bullock), a quem culpa por tentar fazer a vida seguir sem o companheiro, e a avó (Zoe Caldwell), abandonada pelo marido décadas antes e que criou seu único filho, o pai de Oskar, sozinha.
Uma noite, o menino vai ao closet dos pais, encontra um envelope com a palavra black, e, dentro dele, uma chave. Depois de testá-la, sem sucesso, nas fechaduras de sua casa, Oskar decide procurar pessoalmente todas as pessoas com o sobrenome Black de Nova York, numa missão que serve como metáfora sobre a jornada de superação do seu trauma.
A exemplo do que acontece em Tão Forte e Tão Perto, com frequência o cinema vai buscar a perspectiva de crianças para abordar temas espinhosos, como a guerra (Esperança e Glória, de John Boorman, e O Labirinto do Fauno, de Guillermo del Toro). E, no caso da cinematografia brasileira, a pobreza, o abandono e a violência. Exemplos disso não faltam, de Pixote – A Lei do Mais Fraco (1981), assinado por Hector Babenco, a Cidade de Deus (2002), dirigido por Fernando Meirelles.
Miséria no Brasil
“No caso do cinema brasileiro, não é de espantar que a coisa toda esteja associada à miséria geral, que na pátria amada desalmada nos assola a todos – em termos educacionais, econômicos, políticos; em termos de saúde pública, de oportunidades. De direitos humanos. Penso que, por aqui, a perda de inocência tem chance de acontecer muito, muito cedo mesmo”, diz Sandra Fischer, professora da Universidade Tuiuti do Paraná (UTP).
“No caso do cinema brasileiro, não é de espantar que a coisa toda esteja associada à miséria geral, que na pátria amada desalmada nos assola a todos – em termos educacionais, econômicos, políticos; em termos de saúde pública, de oportunidades.”
Lucia Rabello de Castro, doutora em Psicologia pela University of London e coordenadora geral do Núcleo Interdisciplinar de Pesquisa e Intercâmbio para Infância e Juventude da UFRJ, problematiza essa concepção de que a imagem da criança no cinema brasileiro estaria quase sempre aliada às mazelas sociais do país. “Veja o belíssimo Mutum [de Sandra Kogut], que não cai exatamente nesta linha. Acho que a explicação não passa pela conjunção infância e pobreza, mas pelo fato de que a pobreza, tout court, ainda serve de manancial de inspiração para os cineastas brasileiros. Eles talvez ainda não descobriram outras possibilidades.”
Já a doutora em Educação Fabiana de Amorim Marcello, professora da Universidade Luterana do Brasil (Ulbra) em Canoas, afirma que esse vínculo entre mazelas sociais e cinema não seria uma característica da produção brasileira. “Creio que se trata de uma relação mais ampla, que ultrapassa o contexto nacional. Quero dizer com isso que é, de algum modo, compreensível que tenhamos a imagem da criança na qualidade de metáfora para expressar algo pulsante na cultura, sobretudo no que se refere a uma certa inquietação quanto ao futuro.”
Caso iraniano
Um dos casos mais interessantes de representação de crianças no cinema internacional é o do Irã, onde muitos filmes são realizados em torno de protagonistas infantis, como Filhos do Paraíso, de Majid Majid (1997), e O Balão Branco, de Jafar Panahi (1995).
Gilka Girardello, professora da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), diz que as crianças surgem nesses filmes de forma mais complexa, talvez como uma forma de os diretores falarem de temas relativos à vida social do país que não conseguissem abordar de outra forma, em decorrência do controle do Estado – como a situação da mulher na sociedade ou questões mais políticas.
Para Fabiana Marcello, é importante considerar que não se está falando do mesmo conceito de “infância” ou de “criança” em contextos tão diversos como Oriente e o Ocidente. “Sim, há algo que nos aproxima, que permite que nós, ocidentais, sejamos profundamente capturados pelas imagens da infância de diretores iranianos. Mas há também singularidades importantes em jogo, que só podem ser construídas porque, como disse, estamos tratando de conceitos diferentes de ‘criança’ e de ‘infância’. Ao invés da grandiosidade dos temas que geralmente circundam a noção de criança, digamos, ‘ocidental’ (da criança que salva o mundo, que salva o adulto, entre tantas outras), o que esses filmes nos trazem são preocupações singelas, aparentemente pequenas, em função das quais todo um outro universo é apresentado.”
A pesquisadora gaúcha cita o crítico de cinema iraniano Youssef Ishaghpour, para quem essa diferença está radicada numa noção: a adesão ao mundo em sua imediatez ou imediatidade (immédiateté). “Ao invés do grande projeto, o hoje, o agora, no máximo o amanhã; ao invés de salvar o mundo, temos elementos singelos – e que, justamente por isso, nos arrebatam: a epopeia do menino que deseja devolver o caderno ao colega, Onde Fica a Casa do Meu Amigo?, de Abbas Kiarostami; os irmãos que compartilham um mesmo par de tênis, em Filhos do Paraíso; ou o desejo da menina em ter um peixe dourado, em O Balão Branco, de Jafar Panahi (1995).
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