“Mefítico. O fedor vem dos cadáveres, do lixo e dos excrementos que se amontoam além dos Círculos Oficiais Permitidos, para lá dos Acampamentos Paupérrimos. Que não me ouçam designar tais regiões pelos apelidos populares. Mal sei o que me pode acontecer. Isolamento, acho.
Tentaram tudo para eliminar esse cheiro de morte e decomposição que nos agonia continuamente. Será que tentaram? Nada conseguiram. Os caminhões, alegremente pintados de amarelo e verde, despejam mortos, noite e dia. Sabemos, porque tais coisas sempre se sabem. É assim.
Não há tempo para cremar todos os corpos. Empilham e esperam. Os esgotos se abrem ao ar livre, descarregam, em vagonetes, na vala seca do rio. O lixo forma setenta e sete colinas que ondulam, habitadas, todas. E o sol, violento demais, corrói e apodrece a carne em poucas horas.
O cheiro infeto dos mortos se mistura ao dos inseticidas impotentes e aos formóis. Acre, faz o nariz sangrar em tardes de inversão atmosférica. Atravessa as máscaras obrigatórias, resseca a boca, os olhos lacrimejam, racha a pele. Ao nível do chão, os animais morrem.
Forma-se uma atmosfera pestilencial que uma bateria de ventiladores possantes procura inutilmente expulsar. Para longe dos limites dos oikoumenê, palavra que os sociólogos, ociosos, recuperam da antiguidade, a fim de designar o espaço exíguo em que vivemos. Vivemos?” .
Assim é o início de Não Verás País Nenhum, romance de Ignácio de Loyola Brandão que completa 35 anos em 2016 e continua causando impacto literário ao retratar o impacto ambiental.
‘Num universo de horrores, tuberculose / Câncer, tumores, chagas que a prata não repara / Vidas cujo o respeito, não viram nada / O homem sendo a imagem da besta / Crack é fichinha, estão destruindo o planeta’; Criolo – Chuva Ácida.
E se os primeiros parágrafos chocam, o abalo causado pelo livro é maior ainda ao retratar um futuro “hipotético” em que o “esquema” ganha inicial maiúscula ao se institucionalizar e substituir o governo de vez, ao mesmo tempo em que a tão comentada guerra pela água se torna uma realidade.
No entanto, o inimigo não é exterior. A própria população de São Paulo vê a água dos rios brasileiros se tornar peça de museu enquanto bebe urina reciclada e realiza subornos com fichas de água.
É nesse contexto de superpopulação que vive Souza, um professor de história que se aposenta de maneira compulsória. Depois que as escolas deixam de existir ele passa a trabalhar em uma ocupação burocrática e vê a sua realidade de maneira mais crítica após ganhar um inexplicável furo na mão.
Ainda que se orgulhe da marca, muitas consequências surgem a partir dela, como o abandono da mulher, a demissão, a invasão da sua casa e a perda do seu respeito.
Mas, a maioria dos conflitos de Souza são também os de uma grande população, fazendo com que a obra dê uma atenção ao meio ambiente que muitas vezes não damos. Dessa forma, o homem com o furo na mão vive disputando o seu espaço em um ambiente em que o superpovoamento passou do limite pelo fato de as pessoas irem à capital tentando fugir de um calor ainda maior em outras regiões.
No entanto, se a obra vencedora do Prêmio Illa como melhor livro Latino-Americano publicado na Itália em 1983 ganhou destaque por fazer uma alegoria à ditadura, nos dias atuais o que impressiona é a semelhança com a realidade.
Essa relação está presente, por exemplo, quando Souza se refere à reserva da Cantereira como um local com “inclinações peladas, cheias de erosão, onde tinha sido a maior reserva florestal de São Paulo. Solo seco, pedregoso, calcinado”.
Outro aspecto presente no livro e que reflete na atualidade é a especulação imobiliária, que fez com que casas se extinguissem para dar lugar a prédios, tornando até os cemitérios locais que seguem a lógica do “quanto mais alto, melhor”. Mas, claro, a regra só é válida para quem tem dinheiro, já que os demais corpos são empilhados em locais mais afastados onde o restante da população se concentra em acampamentos paupérrimos e luta para sobreviver se abrigando em marquises extensas que cercam a cidade.
No entanto, se na obra a especulação imobiliária se deve ao inchaço das grandes cidades, no plano da realidade foi a ida de dois cearenses a São Paulo que tornou possível que tivéssemos hoje no Brasil um artista como Criolo, que em seu disco mais recente, a releitura do seu primeiro trabalho de 2006, recicla a música “Chuva ácida” e contribui para o debate sobre o meio ambiente.
Pouco discutida no rap nacional, a mudança climática apresentada na canção é vista como uma consequência das nossas atitudes atualmente (“Enquanto ser humano eu vou destruindo o que posso”), que resultariam, assim como no livro, em um calor insuportável no qual os fulanos derreteriam com a falta de água (“A água que é pouca sumirá totalmente / Suas sacolas de dinheiro / Não comprarão seu copo de aguardente / Porque destruiram a cana, que adoça os doces /Que adoça o amargo da vida”).
Já o mercúrio nos rios que Criolo cita também é outro fato com o qual já convivemos, especialmente depois do desastre socioambiental de Mariana (MG). O maior acidente já ocorrido no Brasil pode nos levar a pensar se a água limpa do Rio Doce poderia ter sido salva para fazer parte da Casa dos Vidro de Água, o museu hídrico presente na obra de Loyola.
Dessa forma, a semelhança com a atualidade presente em Criolo e Brandão se torna extremamente preocupante, uma vez que tanto Não Verás País Nenhum quanto “Chuva ácida” foram criadas como obras de ficção, mas cada vez mais se tornam realidade.
Ainda assim, mantemos a esperança de reversão no processo e que, pelo menos nesses casos, a vida não imite a arte.
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