– Eu pinto as coisas como elas são, não posso fazer nada a respeito.
– Muitos o amaldiçoarão por isso.
– Sim, mas depois pintarei algo que os agrade. Todos precisam ganhar a vida. Pelo menos até que a peste acabe.
– A peste?
– Um trabalho de mestre. Veja como os monstros engolem seus rostos e pescoços. O coitado arde em febre e seus músculos se contraem até estourar.
– É terrível.
– Sim, é horrível. Na sua loucura de dor, a pessoa tenta se livrar do veneno arrancando a carne e as veias com as unhas, gritando o tempo todo. Aí então morre.
Essa é a descrição da peste em O Sétimo Selo, filme do diretor sueco Ingmar Bergman que tem a doença como parte do cenário encontrado pelo seu protagonista ao retornar das cruzadas.
Diante desse contexto apocalíptico com o qual se defronta Antonius Block (Max Von Sydow), ele passa a questionar a religião e racionalizar sobre a vida e a morte.
A exterioridade dessas indagações internas gerou uma das mais icônicas cenas do cinema mundial ao colocar o cavaleiro jogando xadrez com a morte, o que poderia fazer com que a vida dependesse direta e unicamente do personagem.
Usada como referência para a capa do disco de Gustavo Black Alien, a narrativa (como o próprio jogo) se insere no contexto da Idade Média e apresenta uma condição na qual a racionalidade poderia se sobrepor à condição humana.
E como o xadrez está presente no cinema, ele também ganhou a sua representatividade no rap nacional por meio da música “A Volta do Bumerangue”.
Presente no disco Produto Mentalfaturado (2001), o único do grupo Ascendência Mista, a música também apresenta uma competição como alegoria para questionar a sociedade.
Dessa maneira, se na clássica obra cinematográfica a interpelação é sobre Deus, na canção do extinto grupo de rap paulistano a indagação não é sobre o divino, mas sobre algo também superior ao humano e que se caracteriza por uma mão invisível que gera a desigualdade social.
Ainda assim, embora o quesito divino não esteja presente, o grupo formado pelos Mc’s Munhoz, Venom e Zorack explora uma crença que se apresenta como Kharma por meio do qual tudo tem o seu retorno. É a volta do bumerangue que dá título à música e, agarrando-se a ela, o(s) eu lírico(s) efetuam uma revolução.
Correndo atrás da informação para solucionar o problema / usando todas as ferramentas para através da consciência humanizar o sistema / a importância da realização de um Fórum Social Mundial é indiscutível / acende a esperança de que um outro mundo ainda é possível. Será mesmo?Ascendência Mista – A Volta do Bumerangue
Desse modo, no primeiro trecho da música, há uma introdução na qual é apresentado o cenário e os competidores: “o império saiu na dianteira. Peões na linha de frente, prontos para o ataque em um terreno quadriculado onde não haverão b.boys / local propício para a criação de mártires e heróis / Mc’s matriculados na nova escola, prontos para provar na prática que toda resistência constrói, baseada na informação que corrói / utilizando como prática princípios de guerrilha / exército revolucionário, Rhima Rhara, família / Bombas de efeito moral contra a massa de manobra inocente, torres de concreto, cavalarias, tropa de choque”.
E se Thiago Munhoz se encarrega de colocar as peças em jogo, Rodrigo Zorack se posiciona no tabuleiro ao lado daqueles que têm menos armas: “Se a vida fosse um jogo de xadrez eu seria o peão / o sem terra disposto a morrer na linha de frente da revolução”.
Mais adiante, da mesma maneira que o cavaleiro questiona a divindade para se entender, o eu lírico da música questiona também a si e a luta que ele mesmo propõe: “correndo atrás da informação para solucionar o problema / usando todas as ferramentas para através da consciência humanizar o sistema / a importância da realização de um Fórum Social Mundial é indiscutível / acende a esperança de que um outro mundo ainda é possível. Será mesmo?”
A “partida” continua por meio de críticas ao inimigo e questionamentos diante da pequenez representada pelo ser humano diante de forças tão grandes: “Após a queda das torres gêmeas no coração da grande maçã / passo a me questionar o quanto a nossa existência é pequena, fugaz e vã”.
No final do jogo, como em O Sétimo Selo, a profecia se cumpre, mas colocando de lados opostos os protagonistas da música e do filme.
A figura do artista
Além do xadrez como alegoria, outra questão relevante na película é a figura do artista.
Isso porque, nesse aspecto, há personagens que são mostrados em polos opostos.
Por um lado, o responsável pelo diálogo que abre esse texto é um pintor que executa uma obra representando os horrores da peste.
Assim, ele se configura como alguém que usa a arte para denunciar e mostrar a realidade por mais chocante que ela seja, ainda que seja necessário pintar coisas belas para pagar as contas.
[box type=”note” align=”alignleft” class=”” width=”350px”]
Leia também
» Questões raciais em Rincon Sapiência e ‘Corra!’
» Almodóvar, Dexter, Dow Raiz e a ausência
» ‘Faça a Coisa Certa’: o calor das tensões raciais em um clássico de Spike Lee
» ‘Manual Prático do Ódio’: uma obra de Ferréz e Quentin Tarantino
[/box]
Por outro lado, a trupe de atores tem a função de entreter e divertir o público, tarefa essa que se personifica no personagem Jof (Nils Poppe), que desde a sua primeira aparição carrega um ar de esperança mesmo diante de um cenário desolador.
Portanto, está presente no filme a ideia da arte enquanto denúncia e também enquanto entretenimento.
Essa é uma característica que pode também ser atribuída ao Ascendência Mista, uma vez que ao lado de grupos como o Quinto Andar, trouxe no início dos anos 2000 a proposta de fazer um rap diferente daquele que era feito até então no Brasil.
Dessa forma, usando rimas sofisticadas que não deixavam de lado o teor crítico, o Ascendência Mista atingiu um novo patamar ao construir uma obra que “é diferente, mas tem conteúdo”.
E uma das principais bases para a construção dessa identidade foi justamente a linguagem metafórica. Bastante usada no rap nacional atual, a figura de linguagem não foi explorada pelo AM de forma vazia e exibicionista. Pelo contrário, ao proporcionar a reflexão e empregar uma nova visão para questões antigas e atuais, o grupo conseguiu, assim como Bergman, usar a metáfora da melhor forma possível.