Com o intuito de supostamente deixar a cidade visualmente mais limpa, o prefeito da maior capital da América Latina resolve, por si mesmo, pintar os muros que contenham graffiti e pichação. Sem um critério muito bem estabelecido, a cidade vai perdendo as cores e se tornando cada vez mais cinza, fazendo com que trabalhos como os da Avenida 23 de Maio sejam arrancados da memória urbana.
A história, embora pareça recente, não é exatamente nova. Isso porque o relato do documentário Cidade Cinza (2013) se passa em 2008, quando a gestão do prefeito Gilberto Kassab criou a Lei Cidade Limpa e apagou, entre muitos outros trabalhos, o mural de mais de 700 metros da avenida em questão.
Ainda em 2008, enquanto os funcionários da prefeitura trabalhavam de segunda a sexta para apagar a expressão das ruas, os escritores de graffiti OSGEMEOS e Nunca mostravam sua arte em Londres a convite da Tate Modern Art.
Ciente do erro, o prefeito voltou atrás e autorizou um novo trabalho que, com o patrocínio da Associação Comercial, faz com que OSGEMEOS, Nunca, Nina, Ise, Finok e Zefix levassem de volta a expressão em cores e formas para as ruas da cidade reta, verticalizada e monocromática.
Com esse “final feliz”, o documentário Cidade Cinza, dos diretores Marcelo Mesquita e Guilherme Valiengo, carrega um certo tom melancólico como se, do começo ao fim, houvesse um lamento pela não valorização do capital urbano pelo próprio poder público.
E a lamúria, infelizmente, continua, uma vez que o atual prefeito da cidade, João Doria, vem fazendo com que a história se repita e torne o filme ainda mais importante, não só pelo fato de servir como um alerta para os erros do passado, mas também por conta da discussão promovida em torno da arte e a sua importância no ambiente urbano.
Representado pela figura de Luis Alves da Costa, responsável por uma equipe da subprefeitura de Pinheiros que roda a cidade apagando as expressões dos muros, a prefeitura e os escritores de graffiti vivem uma verdadeira guerra da tinta, que o documentário retrata também por meio da visão do crítico de arte Fábio Cypriano e Alexandre Gabriel, sócio-diretor da Galeria Fortes Villaça.
Cidade Cinza permite ricos momentos espontâneos que mostram os artistas cantando rap e dançando, expressões usadas na película para promover a ligação do graffiti com o movimento hip-hop.
E é com esses poucos personagens que o documentário apresenta um panorama aprofundado da ocupação do espaço público, diferentemente de Pixo, que opta por uma maior diversidade e quantidade de entrevistados. Dessa forma, Cidade Cinza permite ricos momentos espontâneos que mostram os artistas cantando rap e dançando, expressões usadas na película para promover a ligação do graffiti com o movimento hip-hop e fazer com que OSGEMEOS voltem à gênese da sua história na estação de metrô São Bento.
Mencionando outros graffiti writers, como Speto, Vitche e Binho, os irmãos Gustavo e Otávio Pandolfo apresentam a essência daquilo que os levou a ser valorizados em galerias de diversas partes do mundo mas que nas ruas ainda têm o seu trabalho reprimido e apagado.
Outro desses momentos espontâneos surge para colocar em debate a suposta diferença entre o graffiti e a pichação. Essa aparente oposição entre arte e vandalismo aparece porque, mesmo que estejam se dedicando a um trabalho extenso e planejado, os artistas frequentemente saem do local onde estão pintando para fazer throw-ups em locais não autorizados, mostrando a necessidade de uma expressão mais rápida e visceral que tem a mesma essência do graffiti, mas que se utiliza de outros meios.
Dessa forma, enquanto para a equipe da prefeitura responsável por apagar a arte urbana o critério é deixar os graffitis e apagar as pichações, para os próprios writers as duas formas são válidas e se mantêm coexistentes na sua visão enquanto artistas.
A necessidade dessa manifestação que se mantém reprimida pelo poder público faz com que Cidade Cinza se torne um documentário cada vez mais necessário enquanto registro de uma arte ainda efêmera.
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