É preciso produzir para aparecer?
É preciso produzir?
É preciso aparecer?
Em meio à (des)ordem atual em que a produção constante parece ser cada vez mais obrigatória, dois exemplos invertem o jogo e mostram que a arte não precisa ser fabricada em massa.
Além disso, o MC de Curitiba Nel Sentimentum e o escritor pindoramense Raduan Nassar mostram que se mostrar não traz reconhecimento.
Ao sagrar-se na última semana como vencedor do Prêmio Camões, Raduan Nassar se torna o novo agraciado com a premiação literária mais importante da língua portuguesa. Entretanto, a honraria pode ser questionada, uma vez que é concedida pelo conjunto da obra e Nassar tem apenas três livros publicados, ou “um e meio”, segundo palavras do próprio em entrevista à Folha de São Paulo.
Comparação rápida: vencedora em 2015, a escritora portuguesa Hélia Correia tem 21 publicações, sete vezes mais que o ermitão, que há mais de 30 anos adotou a posição de ex-escritor e vive em uma fazenda longe dos olhos do público, da mídia, das redes sociais e tudo mais.
Por que, então, não o deixamos em paz, já que ele não quer contato com o mundo e nem com a literatura?
Talvez por isso mesmo.
É possível que o fato de ter lançado poucos livros tenha feito com que pudéssemos digerir a sua obra como deveríamos, ao passo que seu afastamento possa nos causar a necessidade de buscar dele as palavras e imagens que nos são dadas por todos o tempo todo, uma vez que sua pequena produção literária causou tamanho efeito.
E além disso? O que teria para nos mostrar?
Mas, precisa de mais?
Entre suas obras a principal é Lavoura Arcaica, o “um livro” a que ele se refere, que conta com apenas 200 páginas, mas que tem imenso impacto, já que traz em suas referências a obra mais lida no Brasil: a Bíblia.
‘Nem sempre tudo é bom nessa nossa existência, cada um tem a sua direção e suas próprias divergências’. Nel Sentimentum – ‘Nada Pode nos Parar’
Usando a parábola do filho pródigo, Lavoura Arcaica usa um estilo textual anterior à Bíblia, mas fortemente usado por ela ao apresentar personagens alegóricos para representar uma narrativa com fundo moral. Na história em questão, um filho herdeiro gasta tudo o que tem e volta ao lar arrependido, sendo recebido na família com o mesmo amor dado ao filho que se manteve ao lado dos pais.
Já na obra de 1975, o irmão que deveria recusar o outro é o responsável por resgatá-lo ao meio familiar, instância em que a ordem deveria se restabelecer, mas é onde tudo se subverte.
Essa inversão da história sagrada se dá ainda, e principalmente, por meio do discurso, uma vez que há uma clara oposição à fala do patriarca, que se expressa de modo prosaico, ordenado e normatizado, enquanto que o filho se exprimi de maneira poética e desordenada.
Assim, arcaico e moderno se unem e se chocam ao ser colocados na mesma obra, que aponta as contradições da família cristã por meio de um texto trabalhado como um arado, que revira a terra e expõe a sua face mais profunda.
Mas, a posição e a pequena produção de Raduan também encontram caso semelhante na figura do curitibano Nel Sentimentum, MC que lançou apenas um disco, mas que é lembrado e venerado.
Integrante do Audiocracia, grupo do qual fazia parte junto ao MC Nairobi e o produtor Léo spk, Nel foi figura importante no hip-hop underground curitibano no começo dos anos 2000. Isso se deve não só pela sua própria produção, mas também por ter amplificado vozes, sendo responsável pela coletânea Upground beats vol. 1, em 2004, com Hurakán, Savave, Vyoladores da Ment, Mirhagew, Maskot, os próprios membros do Audiocracia e o DJ Jeff Bass, incumbido da mixagem. Capitaneado pelo mesmo, o volume 2, de 2010, contou com os audiocratas Nairobi e Nel, além dos MCs Cadelis, Mic Forté e Karol Conká, que mais tarde sairia de Curitiba para ganhar o mundo.
Além dessas, houve ainda a Rimando o 7, que contou com o mesmo elenco do segundo volume e mais os grupos São Nunca e Guerra Santa.
Entretanto, o seu trabalho mais marcante foi o disco Sentimentumlogia, de 2008, no qual, assim como Raduan, une temas e tons opostos tratando do amor e do ódio, da descontração e da reflexão, da subjetividade e da objetividade, de Curitiba e do Japão, temas esses que são direcionados aos admiradores do hip-hop, mas também para quem aprecia arte em geral, unindo rimas de verão em beats de inverno para tratar de temas universais e ensinar a todos a sentimentumlogia.
Depois disso, Nel Sentimentum não lançou mais nenhum trabalho, não foi mais visto, mas continua sendo ouvido, invertendo a ordem assim como Raduan, ao mostrar que um pequeno volume de obras, mas com grande qualidade, é capaz de fazer com que o reconhecimento venha naturalmente para aqueles que não buscam aparecer.
https://www.youtube.com/watch?v=ylOEOZxNAyU