“Há escolas que são gaiolas e há escolas que são asas”.
Ambiente fecundo, mas que, em diversas ocasiões, opta por ser estéril, a escola por vezes faz com que o prazer por aprender seja completamente eliminado. Esse é o sentimento presente na música “Pedagoginga”, do MC de Volta Redonda (RJ), Thiago Elniño. Presente no disco A Rotina do Pombo (2017), nela o eu lírico não se identifica com aquilo que o ambiente de ensino oferece e, consequentemente, faz com que se crie um sentimento de revolta: “mano, vou te falar hein, o lugar que eu odiava / eu não entendia porra nenhuma do que a professora me falava / ela explicava, explicava, querendo que eu / criasse interesse em um mundo que não tinha nada a ver com o meu”.
Entre alguns dos procedimentos utilizados nessas instituições e que fazem com que o sujeito se sinta como o personagem da música estão alguns dos fatos linguísticos e a forma com que são ensinados. Sobre esse assunto, o professor titular no departamento de linguística da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Sírio Possenti, propõe uma discussão em Por que (não) ensinar gramática na escola. Dentre os diversos temas debatidos na obra, está a noção de regra, vista sob a ideia de obrigação que, se o falante não seguir, estará sujeito às sanções sociais e escolares que fazem com que seja considerado ignorante ou não mereça passar de série.
Dessa maneira, o conceito de erro decorrente da gramática normativa é visto como tudo o que foge da variedade eleita como boa linguagem. Entre outros fatores, a questão do ensino da língua sendo adotada dessa maneira é o que faz com que o aluno tenha cada vez menos vontade de ir para a aula e se sinta mal por estar naquele ambiente uma vez que parte considerável das escolas coloca o conhecimento prévio do aluno como sendo “errado” e o descarta.
É isso que Possenti aponta como sendo uma função distinta daquela que a instituição deveria cumprir: “o papel da escola não é o de ensinar uma variedade no lugar da outra, mas de criar condições para que os alunos aprendam também as variedades que não conhecem, ou com as quais não têm familiaridade, aí incluída, claro, a que é peculiar de uma cultura mais ‘elaborada’”.
Caso a maneira de empregar seus métodos de ensino sejam aquelas que ignoram o conhecimento prévio do aluno, corre-se o imenso risco de fazer com que ele se encaixe em um método no qual ele não está adaptado e desperte o sentimento de inadequação sobre o qual a música de Elniño versa: “Não sei se a escola aliena mais do que informa / te revolta ou te conforma com as merda que o mundo dá / nem todo livro irmão foi feito para livrar / depende da história contada e também de quem vai contar”.
Por outro lado, a proposta do professor é a de que a escola deva conhecer, entender e valorizar a riqueza linguística que já pertence ao aluno para, então, mostrá-lo que existem alternativas que podem ser exploradas por meio da leitura, da escrita, da narrativa oral, e de todas as formas de debate e interpretação como o resumo e a paráfrase. Isso porque, segundo ele, “é no momento em que o aluno começa a reconhecer sua variedade linguística como uma variedade entre outras que ele ganha consciência de sua identidade linguística e se dispõe à observação das variedades que domina”.
‘Não sei se a escola aliena mais do que informa / te revolta ou te conforma com as merda que o mundo dá / nem todo livro irmão foi feito para livrar / depende da história contada e também de quem vai contar’ Thiago Elninõ – Pedagoginga
Essa identidade linguística apontada pelo professor está também, obviamente, ligada à identidade do sujeito de maneira mais ampla, e nesse sentido a música com participação de Sant e Kmkz fala sobre como a sua personalidade foi diminuída perante a escola, mas que, posteriormente, conseguiu se libertar por meio do hip-hop: “Para mim contaram que um preto não tem vez / e o que que o hip hop fez? Veio e me disse o contrário / A escola sempre reforçou que eu era feio / O hip hop veio e disse: ‘tu é bonito para caralho’ / O hip hop me falou de autonomia / Autonomia que a escola nunca me deu / A escola me ensinou a escolher caminhos / Dentro do quadradinho que ela mesma me prendeu”.
Para superar esse padrão e esses traumas, o doutor em Linguística propõe que o ensino se dê por meio de uma ordem que parta da gramática internalizada, aquela que o falante já usa, passe para a gramática descritiva, que apresenta as diferentes variações, e em seguida chegue à gramática normativa, que apresentaria o conjunto de regras que “devem” ser seguidas e que são mais aceitas socialmente.
Dessa maneira, isso iria “fazer com que o ensino do português deixe de ser visto como a transmissão de conteúdos prontos, e passe a ser uma tarefa de construção de conhecimentos por parte dos alunos, uma tarefa em que o professor deixa de ser a única fonte autorizada de informações, motivações e sanções. O ensino deveria subordinar-se à aprendizagem”.
A proposta de Possenti, entretanto, não se limita apenas ao ensino da língua, mas se adotado também pelas demais disciplinas poderia fazer com que o aprendiz se sentisse livre, diferentemente do retratado por Elniño: “Para superação, tanta humilhação, / atravessar o oceano para trampar na sua plantação / café, algodão, cana, escravidão, / alforriaram o nosso corpo mas deixaram a mente na prisão. / Não! Abre logo a porra do cofre, / Não tô falando de dinheiro eu falo de conhecimento / Eu não quero mais estudar na sua escola, / que não conta a minha historia e na verdade me mata por dentro”.
Assim, usando a experiência, o conhecimento e a linguagem do aluno, longe de uma ideia de “certo” e “errado”, a escola poderia dar assas e criar a vontade de aprender. O próprio hip-hop pode ser uma maneira de começar a ensiná-lo a voar.
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