Dentro do processo de descentralização das políticas públicas culturais, promessa de campanha do presidente eleito, haverá alguns desafios que não estarão nas mãos do futuro ocupante do Ministério da Cultura. Alguns estados seguiram o modelo de Brasília e tiraram o status de secretaria da área de Cultura, caso do Paraná.
O compartilhamento de responsabilidades na gestão e destino do orçamento para o setor passará diretamente pelos gestores locais. Sem o fortalecimento das pastas nos estados e municípios, os obstáculos à Cultura devem permanecer.
No entanto, o provável maior desafio a ser enfrentado é o de acabar com a “guerra cultural” criada ainda durante a presidência de Michel Temer, e alimentada de forma particular nos quatro anos do ainda presidente Jair Bolsonaro.
“Ainda há um desconhecimento muito contundente de boa parte dos gestores e funcionários públicos sobre o impacto do setor cultural, tanto na economia de um país, quanto na qualidade de vida da população”, alerta a pesquisadora Fayga Moreira.
O provável maior desafio a ser enfrentado é o de acabar com a “guerra cultural”.
Para o cientista social Leonardo Rossatto, o processo de “ressignificação” pelo qual a cultura brasileira passou nos últimos quatro anos vai além de um direcionamento à desimportância da área. “Guerra cultural é uma estratégia da extrema direita em diversos lugares do mundo para sobrepor pautas morais às pautas sociais e econômicas”, comenta o especialista em políticas públicas. “E esse artifício também tem sido utilizado sistematicamente no governo Bolsonaro”, analisa Rossatto.
Em entrevista à Folha de S.Paulo, o historiador Célio Turino, ex-secretário da Cidadania Cultural do Ministério da Cultural entre 2004 e 2010, nome responsável pela implementação dos Pontos de Cultura no Brasil, pontuou como é essa “guerra cultural” que motiva a vilanização do setor, artistas e políticas públicas culturais.
“Precisaremos de tempo e muito trabalho e empenho não apenas para reconstruir o campo cultural, mas todo o país”, pondera Fayga Moreira. “A institucionalização do campo cultural sempre foi muito frágil em nosso país”, sinaliza, apesar de compartilhar um olhar animador sobre o futuro. “Acredito que será questão de tempo para reconstruirmos e avançarmos ainda mais. Temos a direção, basta que os ventos sopre a favor”.
O desafio, além do esclarecimento da população, pode estar no Congresso, onde a extrema-direita ganhou espaço. “Mas também [devemos] nos adequar à realidade econômica da conjuntura nacional e internacional”, alerta Moreira.
O presidente eleito, Lula (PT), encontrará um velho conhecido em seu retorno ao Planalto. O Sistema Nacional de Cultura (SNC), que era chamado de “o SUS da Cultura”, instituído a partir do Plano Nacional de Cultura (PNC) no segundo mandato de petista, não foi implementado. Seu prazo, inclusive, foi prorrogado por duas vezes na atual gestão.
Os obstáculos vão além das restrições orçamentárias. “Os entraves são principalmente conceituais e ideológicos”, afirma Fayga Moreira. “Essa batalha acaba impactando nas dimensões institucionais e orçamentárias”, completa. Sobre o futuro, a pesquisadora defende a retomada dos pilares da institucionalidade cultural, anteriormente construídos. “Mas, diante do estado em que a sociedade brasileira se encontra, seria fundamental retomar espaços de escuta e mediação, como as Conferências de Cultura que pavimentaram a proposição do SNC e do Plano Nacional de Cultura”.
Os programas de governo, que tiveram a Cultura como penduricalho, perderam espaço na campanha, mas não devem perder na construção de políticas públicas, como analisa o pesquisador Leonardo Rossatto. “Lula já [havia] anunciado políticas de fortalecimento para a área, ainda que elas não estivessem tão detalhadas em seu programa”, comenta.
“Os últimos quatro anos foram de perseguição à Cultura, uma perseguição moralista, que associa o setor à imoralidade”, cita Rossatto, para quem o cenário foi preponderante ao baixo compromisso de diversas campanhas nas eleições de 2022. “A tônica esse ano foi a da construção de peças curtas e genéricas, que pudessem incorporar com facilidade propostas durante o período eleitoral. Com isso, temas passíveis de perseguição perderam espaço dentro dos programas”, finaliza.
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