De acordo com a comunicação oficial da Prefeitura, a cidade de São Paulo está prestes a realizar “o maior Carnaval do Brasil“. A frase, usada na peça publicitária oficial, virou meme nas redes sociais. Mas, além disso, causou descontentamento em alguns dos principais envolvidos na festa: os blocos de rua que irão participar do cortejo.
Pelo segundo ano consecutivo, os organizadores dos blocos de São Paulo têm manifestado insatisfação pela forma com que a Prefeitura gere a participação desses grupos. As reclamações atingem vários aspectos da produção feita pelo executivo – que, esse ano, centralizou o trabalho na SPTuris, a empresa oficial de turismo e eventos da cidade de São Paulo (em 2024, a gestão foi colocada na Secretaria de Subprefeituras, o que também desagradou).
Nesta reportagem, a Escotilha ouve representantes dos blocos de São Paulo para entender as reivindicações feitas e quais são as expectativas para o Carnaval de 2025.
O descaso com a cultura

A Prefeitura de São Paulo, por meio da SPTuris, divulgou que bateu o número de blocos de rua inscritos para desfilarem nos dias de Carnaval. Foram no total 767 blocos inscritos e com mais de 800 desfiles previstos. A estimativa do órgão é que, em 2025, a cidade supere o número de visitantes do ano passado, cálculo apontado como “exagero estatístico” por especialistas. “Isso não é algo que está acontecendo só agora. Mas, em particular, no Carnaval, os números que têm sido divulgados são extremamente exagerados”, afirmou Marcio Moretto Ribeiro, coordenador do Monitor do Debate Político no Meio Digital, em entrevista ao jornal Folha de S. Paulo.
Os dados estratosféricos poderiam ser vistos como argumento até plausível para sustentar o título de “maior Carnaval do Brasil”. Contudo, os organizadores dos blocos reclamam de vários aspectos da organização da Prefeitura, como o foco na promoção de blocos gigantescos, promovidos por grandes produtoras, que encaram o evento pela perspectiva exclusivamente comercial. Deste modo, haveria uma desvalorização das iniciativas culturais da própria cidade, que representariam o verdadeiro Carnaval paulistano.
Esta é a visão de José Cury Filho, coordenador do Fórum Aberto dos Blocos de Carnaval de São Paulo, que reúne cerca de 200 agremiações, e organizador do Bloco Me Lembra Que Eu Vou. Cury vê um esvaziamento do escopo cultural do Carnaval já no fato de que, segundo ele, não há mais qualquer relação com a Secretaria Municipal de Cultura e Economia Criativa. “Nós nunca nem vimos o secretário”, pontua.
“Ricardo Nunes não abre nenhum diálogo com os blocos”
José Cury Filho, coordenador do Fórum Aberto dos Blocos de Carnaval de São Paulo
Isso faria com que o aspecto técnico da cultura se afaste cada vez mais da folia paulistana. Para Gustavo Xavier, idealizador do Bloco Jah É, que existe desde 2019, esta é uma opção política, que se reflete em um desejo de esvaziar a Secretaria Municipal de Cultura e Economia Criativa. “Pelo menos desde a gestão de Bruno Covas, não tem sido realizado concursos públicos para repor os quadros de reconhecimento técnico de cultura. Hoje, a Prefeitura atua pela lógica da contratação por convênios políticos. Antes, a Secretaria tinha um corpo técnico robusto, tanto que outros eventos eram capitaneados pela Cultura, como a Virada Cultural“, afirma.
Ele acredita que o enxugamento da pasta tem feito com que vários setores antes reconhecidos como bons percam força. Um dos impactos negativos recairia sobre a promoção da festa. “O setor de fomento da Secretaria de Cultura quase não tem funcionários. Hoje, tem dois, antes tinha entre 15 e 20. Não há mais técnico jurídico para analisar documentação de editais, por exemplo”, aponta.
Para exemplificar o descaso da gestão atual com a Secretaria de Cultura e Economia Criativa, Gustavo Xavier menciona o fato de que o responsável pela pasta mudou várias vezes nos últimos dois anos. Atualmente, o secretário é José Antônio Totó Parente, que vem do Mato Grosso e não tem trajetória profissional na cultura. A indicação de Parente é questionada pelo setor cultural.
“Ele nunca morou em São Paulo, e foi trazido para ser Secretário de Cultura na maior cidade da América Latina. É essa a forma que a atual gestão enxerga a área”, acrescenta Xavier. De acordo com o idealizador do Bloco Jah É, os produtores do Carnaval paulistano já tentaram várias vezes, sem sucesso, manter diálogo com a Prefeitura para apresentar suas demandas.
José Cury conta ter sido convidado a auxiliar a SPTuris na organização do Carnaval de rua de São Paulo, mas diz ter recusado por considerar “um acinte”. Isso porque a Prefeitura teria ignorado várias solicitações dos organizadores locais, do que decorreu muitos erros na organização. “Ricardo Nunes não abre nenhum diálogo com os blocos”, afirma.
Prioridade aos megablocos

Um dos aspectos mais complicados, conforme os representantes dos blocos já reiteravam em 2024, é a ênfase que a Prefeitura dá aos megablocos, que são realizados por produtoras profissionais. O maior exemplo este ano é o que receberá o cantor Léo Santana – ele se apresenta no dia 9 de março com o bloco Vem com o Gigante, que sai em frente à estação Parada Inglesa do metrô.
Os entrevistados defendem que haja um fomento mais justo, e que foque também nas iniciativas mais periféricas. “A própria Secretaria Municipal de Cultura e Economia Criativa já tem nela os mecanismos, por exemplo, de fomento às periferias, ou para blocos mais velhos. Tem como fazer uma seleção melhor”, afirma Gustavo Xavier.
Ele denuncia que, entre os selecionados de 2025, há contemplados com o prêmio que são projetos elaborados a partir de baladas da cidade, e não coletivos de Carnaval de rua. “Claro que as produtoras são bem-vindas, e elas agigantam o nosso Carnaval. Mas elas não podem entrar na mesma concorrência que um coletivo que dá aula de percussão durante o ano inteiro”, aponta Xavier.
José Cury afirma que a ideia do maior Carnaval do país é uma “mentira orquestrada”. “Para produtores que comercializam o espaço público, para as marcas que vão aparecer, o Carnaval está fácil, pois recebem benefícios da Prefeitura”, diz.
Questionamento quanto ao fomento

Ainda dentro do fomento público, há a indagação sobre como os blocos foram selecionados. Em 2025, de todos os blocos inscritos, 100 foram selecionados para receber um prêmio de R$ 25 mil para custear gastos do desfile.
De acordo com Cury, o edital (que avaliava quesitos como “Adequação ao Tema e à Identidade Cultural” e “Histórico e Relevância do Bloco”) aprovou blocos que ainda nem nasceram, enquanto outros mais tradicionais ficaram de fora. Isso teria a ver com um questionamento já feito em 2024 sobre as burocracias impostas pela Prefeitura, que acabaria excluindo da festa blocos de bairro.
Para Cury, entre os 767 blocos inscritos, pelo menos 300 têm alguma ligação reconhecida com as comunidades de São Paulo. Um deles é o Bloco do Fuá. Nascido no Bixiga, o bloco existe há 13 anos, e ficou em 101° lugar na lista para receber o fomento.
“Essa gestão não é muito simpática com o Carnaval. A festa gera muita receita pra cidade e os protagonistas ficam com uma porcentagem ínfima”.
Rodrigo Pirituba, do Bloco Samba Rock e Serpentina
Para Marco Ribeiro, dono do Bloco do Fuá, há dois problemas fundamentais nesse sistema: o fato de que apenas 100 foram contemplados e que os blocos só devem receber o dinheiro depois do Carnaval. “Com isso, muitos desistem de fazer seus cortejos, pois não têm dinheiro para colocar o desfile na rua”, diz.
Já o Bloco Samba Rock e Serpentina, que existe desde 2019, ficou em 109° na fila dos aprovados para o fomento. Rodrigo Pirituba, músico, compositor e arte-educador e um dos fundadores do bloco, conta que eles tentaram questionar o resultado, mas o contato com a Prefeitura foi complicado. “Somos o único bloco que contempla o Samba Rock, que é patrimônio imaterial da cidade”, afirmou.
Ainda no que diz respeito ao fomento, outro problema levantando por Cury é a falta de clareza de qual será o desconto de impostos em cima dos R$ 25 mil. Ele afirma que o prêmio é pago com diferenças de alíquotas para quem se inscreve como pessoa física ou jurídica. “Por isso os organizadores dos blocos não têm noção clara do quanto podem gastar”, explica.
Rodrigo Pirituba diz que o cortejo do Samba Rock e Serpentina, que sai na Barra Funda, só vai ser possível por conta dos apoiadores, que incluem bares tradicionais, como Ó do Borogodó e Boteco da Dona Tati, e pequenos comerciantes. “Essa gestão não é muito simpática com o Carnaval. A festa gera muita receita pra cidade e os protagonistas ficam com uma porcentagem ínfima e, no nosso caso, nenhuma verba”, opina.
Horários de matinê

Por fim, uma reclamação recorrente entre os foliões de São Paulo também é citada pelos produtores: o fato de que a Prefeitura coloca o horário máximo de encerramento dos cortejos às 18 horas. José Cury afirma que há uma pressão realizada nos blocos para que a rua já esteja limpa a esse horário, o que significa que os grupos precisam parar de tocar no máximo às 17 horas para favorecer a dispersão e não levar multas.
Essa é a principal reclamação do Bloco do Fuá. “Como somos obrigados pela Prefeitura a encerrar os cortejos às 18 horas, costumo dizer que é matinê. Na época do início do cadastro dos blocos, o Fuá iria até às 22 horas, depois reduziram para às 20 horas, 19 horas, e agora 18 horas. Na maior cidade da América Latina, o Carnaval acaba às 18 horas com o argumento de que irão limpar as ruas. Durante o ano todo não limpam e vão limpar justamente nos dias de Carnaval?”, questiona Marco Ribeiro. Para Rodrigo Pirituba, estes horários trazem prejuízos: “há a questão do horário ser só até as 18 horas com uma dispersão forçada pela Polícia Militar, o que gera um clima hostil com os foliões”.
Houve ainda uma solicitação dos blocos pela mudança de horário, feita por meio do manifesto “As Águas Vão Rolar” em virtude das ondas de forte calor que acometem a cidade. A resposta do prefeito Ricardo Nunes foi de rejeição à proposta, mantendo os cortejos entre 10 e 18 horas. Todas estas questões podem estar colaborando para que ocorram desistências de desfiles: dos 767 blocos inscritos, 601 devem por fim ir para as ruas.
O fato é que, pelo segundo ano consecutivo, os fomentadores do Carnaval mais popular da cidade têm mostrado insatisfação com o tratamento que recebem do poder público. “Quem tem que ser protagonista do carnaval de rua de São Paulo são os blocos que levam música orgânica, em formato de bateria e fanfarra. Isso é um bloco genuíno”, conclui Gustavo Xavier. Se isso vai se efetivar em 2025, só os foliões poderão dizer.
O que diz a Prefeitura?
Questionada pela Escotilha em relação aos pontos levantados pelos representantes dos blocos ouvidos pela reportagem, a Prefeitura de São Paulo, por meio da Secretaria Municipal de Cultura e Economia Criativa, respondeu que não houve redução no Fomento aos Blocos de Rua para o Carnaval de 2024, mantendo-se a mesma quantidade de contemplados (até 100 blocos) e o valor total distribuído de até R$ 2,5 milhões.
Em relação à organização ser feita pela SPTuris, a Prefeitura comunica em sua nota: “O Carnaval de São Paulo é regulamentado pelo Decreto nº 58.857/2019, que estabelece diretrizes para o planejamento e a execução do evento. Em 2024, foi publicado o Decreto nº 53.925/2024, que criou a Comissão Especial de Organização do Carnaval de Rua 2025. Este decreto determina que a SPTuris, em coorganização com a Secretaria Municipal de Cultura, será responsável pela realização do Carnaval de Rua 2025, incluindo a gestão dos blocos”. No que tange ao questionamentos sobre os horários, não houve resposta.
Confira aqui a programação do Carnaval de rua em São Paulo.
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