Desde 2016, a Avenida Paulista, em São Paulo, é um espaço aberto aos domingos para a expressão de muitos artistas de rua vindos de vários locais do país e até do mundo. No entanto, os mesmos artistas que ocupam a avenida com suas apresentações têm denunciado terem sido impedidos pela Prefeitura de tocar no local.
A banda Picanha de Chernobill, que ocupa a Paulista com seus shows desde 2016, usou suas redes para manifestar que no domingo, 2 de fevereiro, os músicos foram abordados por três policiais que disseram que eles não poderiam se apresentar por utilizarem instrumentos elétricos, que demandam de equipamentos de som.
“Por volta das 10 horas da manhã, estávamos montando as coisas e apareceram três policiais do Choque, e falaram de uma suposta nova lei municipal que estava sendo implantada e que proibiria caixa de som”, contou Fernando Salsa, baterista da banda.
O impedimento de tocar fez com que vários artistas se preocupassem com a possível perda de um direito regularizado em um decreto promulgado pela Prefeitura em 2014. Nele, lê-se que eles podem se apresentar desde que não impeçam “a passagem e a circulação de pedestres, bem como o acesso a instalações públicas ou privadas” e que não podem utilizar “palco ou estrutura similar com suporte físico de área superior a 4 m², altura maior que 50 cm do solo ou com cobertura estrutural”, casos em que se necessita de autorização prévia da Prefeitura. Não há qualquer menção a equipamentos de som.
Fenômeno na internet, o cantor Joow J, nome artístico de Jonathan de Jesus Oliveira, é hoje mais conhecido como Porquinho da Paulista. Ele é uma grande atração nos domingos na avenida, onde se apresenta perto do Shopping Center 3 e atrai vários fãs que querem ouvir sua voz e tirar fotos com ele.
Jonathan conta que está na Paulista há mais de 10 anos, e que notou mudanças na postura da Prefeitura ao longo do tempo. “Está bem chato mesmo. Dizem que até 2018, 2019, era de boa. A gente podia cantar no Ibirapuera, e agora não pode mais. Já tive abordagens, mas não desisto”, conta.
Retrocessos no Programa Ruas Abertas

O fechamento da Paulista durante os fins de semana é um reflexo do Programa Ruas Abertas, que foi implantado em São Paulo em dezembro de 2016, durante a gestão de Fernando Haddad. Trata-se de um projeto que visa incentivar a ocupação dos espaços públicos da cidade ao abrir as vias para pedestres e ciclistas durante domingos e feriados em diferentes regiões da cidade. Além da avenida mais famosa do Brasil, há outros espaços (são 29 ruas no total) que participam do programa, incluindo vias do bairro da Liberdade e o Elevado Presidente João Goulart, viaduto conhecido como Minhocão.
No entanto, observa-se alguns retrocessos ao programa nos últimos anos, o que decorre também das visões políticas da gestão do prefeito Ricardo Nunes, atualmente cumprindo seu segundo mandato. O fechamento da própria Paulista, por exemplo, foi suspenso durante a pandemia de Covid-19 em 2020 e 2021. Ao ser retomado, em 2022, seu horário foi reduzido: a via, antes fechada das 10h às 18h, começou a ser destinada aos pedestres e ciclistas das 9h às 16h.
De acordo com o advogado Guilherme Varella, que participou da coordenação da política para o Carnaval de rua de São Paulo durante a gestão de Fernando Haddad, não há qualquer questão que justifique a ação da Prefeitura para impedir apresentações dos artistas.
“Não há nada real e concreto que exija uma ação da Prefeitura tão drástica para retirar os músicos das ruas, sobretudo da Avenida Paulista, que é um espaço que comporta com tranquilidade todos os eles. O que está acontecendo de verdade é uma orientação política da Prefeitura de cerceamento de tudo o que é manifestação pública das artes”, explicou Varella (leia entrevista completa aqui).
“Deixar de tocar com Paulista significar perder muita coisa que conquistamos, como contatos com pessoas que conhecemos, o que nos levou a uma turnê na Europa e no Lollapalooza”.
Fernando Salsa, baterista da banda Picanha de Chernobill
Fernando Salsa conta que nota, ao lado de seus companheiros de banda, uma mudança gradativa na postura dos gestores. “De uns dois anos para cá, foram mudando algumas coisas. Nós temos uma banquinha, e pela lei dos artistas de rua não é permitido vender. De um tempo para cá, vem aumentando o número de PMs que fazem ronda e eventualmente encrencam com a nossa banda, dizem que não temos estrutura. Mas, na conversa, conseguimos nos desvencilhar”, afirma.
Ele diz ter testemunhado policiais impossibilitarem as apresentações de vários músicos, incluindo os que não tinham equipamentos elétricos grandes. Salsa destaca que o espaço da Paulista é fundamental para artistas autorais, como é o caso da Picanha de Chernobill: “para quem faz um som autoral, como nós, e quer tocar para um público maior, o melhor lugar com certeza é a Paulista. Deixar de tocar com Paulista significar perder muita coisa que conquistamos, como contatos com pessoas que conhecemos, o que nos levou a uma turnê na Europa e no Lollapalooza, que tocaremos este ano. Seria muito ruim perder tudo isso, essa oportunidade que o Ruas Abertas deu para a gente”.
Jonathan, o Porquinho da Paulista, também crê que não há outro espaço que se compare à Paulista para que os artistas se apresentem. “É uma vitrine. Lá tem pessoas do mundo inteiro passando, o que significa que a gente está tocando no coração de São Paulo, se não do Brasil”, comentou.
O que diz a Prefeitura?

O conflito ocasionado no domingo, dia 2 de fevereiro, fez com que a Subprefeitura Sé, que é responsável pelo região da Paulista, chamasse uma reunião extraordinária com um grupo de trabalho formado por artistas de rua e membros da Secretaria de Cultura.
De acordo com nota enviada à Escotilha, entre os temas que foram tratados na primeira reunião, estão a atualização de uma cartilha que define as atividades dos artistas de rua, além de critérios sobre o que constitui arte de rua e eventos, incluindo o uso de geradores, volume ideal e locais permitidos para apresentações. A nota afirma ainda que esta cartilha será elaborada por todos os participantes.
Em entrevista concedida à TV Globo, o subprefeito da Sé, coronel Álvaro Camilo, declarou que é preciso coibir excessos. “Pode vir, pode tocar, pode trazer sua caixinha de som, desde que sejam ativações pequenas”. O coronel ainda afirmou que a Paulista precisa de “organização”. “É isso que o público quer, que a Paulista fique aberta para todo mundo, sem distinção. Precisamos ter a Paulista aberta para que as pessoas possam andar de patins, andar de skate, andar de bicicleta, ou seja, ela é dos artistas, mas ela é de todo mundo. E, principalmente, que o som não seja tão alto que incomode os moradores, nós temos condomínios aqui na Paulista”, ressaltou.
Jonathan de Jesus Oliveira diz que, na reunião, houve um incentivo para que os artistas fossem para outros locais da cidade, como o centro. “É difícil porque as pessoas não vão para o centro, ainda mais no domingo. Fica tudo deserto. E tem gente que toca só na Paulista”. Uma nova reunião está agendada com a Subprefeitura Sé para o dia 17.
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