Dias desses, por ocasião especial do destino, passei uma tarde com a filhota de 1 ano e meio em um quarto de hotel. Estava quente, precisava descansar (afinal, já estou no sétimo mês da segunda gestação), queria fugir um pouco do sol escaldante que fazia naquele dia.
Substitui os passeios por uma tarde de descanso em um quarto de hotel comum: cama, tevê, banheiro. Depois de um tempo distraída com alguns brinquedos e de ter os dedos esmagados pelo pouco traquejo com a gaveta da cômoda, vi o tédio no olhar da minha filha.
Liguei a tevê. Não que a gente não veja tevê em casa, mas vemos pouco e a escada, o quintal e o cachorro ainda ganham na disputa de atenção da pequena. Também, por opção, não costuma ser a primeira medida utilizada para entreter a cria. Mas ali, naquele quarto sem graça, a tevê ganhou destaque e tomou nossa atenção.
Deixei no Discovery Kids, primeiro canal infantil que apareceu por ali. Não temos mais tevê por assinatura em casa (obrigada, Netflix), então eu realmente ainda não tinha tido a oportunidade de prestar atenção nesse tipo de programação.
Para nossa sorte (ou não), bem na hora estava passando um episódio da famigerada Peppa Pig e pude comprovar os efeitos anestésicos imediatos da atração, sobre os quais já ouvia falar. Engraçado no início, um pouco assustador depois de ver que aquela criança serelepe que não para nunca estava há mais de cinco minutos com o olhar vidrado e completamente imóvel. No resto da tarde, mais três ou quatro tipos de desenho, sempre entrecortados por muita propaganda.
Muita propaganda. Propaganda demais. Várias propagandas de brinquedos e da própria programação. Propagandas o tempo todo. Propaganda de parques e viagens. Propaganda de sites e aplicativos. Propaganda de comida. Propaganda de brinquedos para meninas e brinquedos para meninos.
Os meninos são super-heróis, têm carros fantásticos, pistas de corrida, estão em naves espaciais. As meninas estão cuidando de bebês, usando sapatos que vem com maquiagem combinando ou lidando com bolsas e bonecas.
O discurso dali reforça todo o padrão “menina princesa” X “menino aventureiro”, que é produto da sociedade machista e que, mais tarde, fará com que essas crianças mantenham o status quo e continuem reproduzindo seus papeis “como manda o figurino”. Muito anúncio de brinquedos licenciados dos programas que passam ali.
Bonecos, mochilas, comida, roupas e todo mais um mundo de coisas estampados com os personagens queridos dos desenhos infantis, que, nas cabecinhas em formação das crianças, devem sem sombra de dúvida ser os melhores produtos, afinal, levam a marca da atração preferida.
Com algum grau de autonomia e um pouco mais madura que as crianças em geral, eu já estava convencida pelas propagandas. Qual será o efeito dessa enxurrada de publicidade nas crianças?
Eu, adulta e dona de um cartão de banco que já sei manipular com maestria, poderia facilmente me sentir impelida a sair daquele quarto e comprar todos os brinquedos que vi nas propagandas da programação do Discovery Kids. Com algum grau de autonomia e um pouco mais madura que as crianças em geral, eu já estava convencida pelas propagandas.
Qual será o efeito dessa enxurrada de publicidade nas crianças? Estamos criando pequenos consumistas mesmo diante de um mundo com recursos claramente finitos? Talvez sim.
Crianças ganham muitos presentes, muitas roupas, muitos sapatos, muitos brinquedos e, num momento da brincadeira que é assistir à televisão, lá vem mais propaganda.
Compre, tenha, olhe a novidade. Com sorte, já ultrapassamos o absurdo “eu tenho, você não tem” dos anos 1990. Mas ainda é desumano que os desenhos sejam entrecortados por tanta propaganda.
Mas acho que urge um novo olhar, principalmente se colocarmos na balança o seguinte dado: os canais infantis são os que tem o maior número de assinantes. Discovery Kids lidera com 17,4 milhões de assinantes. Cartoon Network tem 16,2 milhões, seguido do Gloob e Nicklodeon, com 15 e 13,4 milhões de assinantes, de acordo com o Mídia Dados do Grupo de Mídia de São Paulo. Já pensou quantas tevês estavam ligadas e quantas pequenas cabeças com pouco mais de 40 cm de diâmetro viram o quê eu vi numa tarde de domingo?
Legislação
A publicidade para crianças é perversa, pois age diretamente com as mentes e corações de seres em formação, que não tem plena capacidade de decisão. Tanto é que, a passos lentos, a legislação caminha para coibir os abusos nesta seara, na tentativa de fazer valer um dos artigos da Constituição, o de nº 227, que versa sobre a proteção às crianças e adolescentes e diz que é dever do Estado e da sociedade “livrá-las de toda forma de violência, exploração, crueldade e opressão”.
Em 2014, uma resolução publicada pelo Conselho Nacional dos Direitos das Crianças e dos Adolescentes (Conanda) considerou abusiva a publicidade voltada para crianças e adolescentes. O texto não tem força de lei, mas é um primeiro passo em um longo caminho: está documentado que a propaganda é ruim e abusiva para as crianças. Há pelo menos 30 projetos de lei sobre o assunto em tramitação na Câmara dos Deputados e no Senado. Pelo mundo, há diversos entendimentos diferentes sobre a publicidade infantil e há países que restringem o tempo ou o conteúdo desse tipo de propaganda. Outros, como a Suécia e alguns estados do Canadá proíbem completamente esse tipo de mensagem.
Uma decisão do STJ, em março desse ano, obrigou uma empresa a retirar do ar uma campanha publicitária que incitava o consumo do produto mediante a troca por um brinquedo, o que a corte considerou como venda casada. Considerado histórico, esse julgamento pode influenciar novos casos, semelhantes.
Nem 8, nem 80
Vale ressaltar que acho justo e válido o uso dos eletrônicos com as crianças. Não acredito nos extremos e acho que deixar a tevê ligada o tempo todo no ambiente com a criança ou, pelo contrário, eliminar qualquer tipo de tela da vivência dos pequenos são opções ruins. Complicado isolar a pequena criatura de uma tecnologia que será própria do tempo dela.
Acredito que é necessário em alguns casos deixá-las distraídas alguns minutos com a tevê, tablet ou celular. Outras vezes é melhor embarcar na onda e acompanhar os pequenos enquanto assistem algo, para entenderem a atividade como algo que se compartilha e não um momento de solidão.
Mas depois da minha experiência assistindo ao canal infantil, reforço meu entendimento sobre uma necessidade de o cuidador atuar como um filtro para o que a criança vai assistir; procurar diferentes formatos, mesclar a estética mais clássica e atrações mais calmas, colocar uma pitada de noticiário e programa de culinária, quem sabe!?
Incluir uns shows de música e, vez ou outra deixar que a Peppa e afins entrem em nossas casas (haverá os dias em que… só ela salvará!). Mas fugir da programação que gira no automático e que nos deixa à mercê do enxurro de publicidade é urgente.
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