Quando tinha dezoito anos, parte da minha vida, aquele início da fase de jovem adulto, era gasto entre bebidas, cigarro e rock and roll. Obviamente não nesta ordem e tampouco todas de uma vez. Morávamos, eu e meus amigos, quase todos no mesmo bairro, o que para os dias atuais era quase como a conjuntura perfeita dos astros.
Não morava no subúrbio, ao contrário, era uma região ligeiramente central da cidade, mas que já vinha sofrendo os reflexos da especulação imobiliária. O Castelo – que de principado só tinha uma velha torre d’água, símbolo da cidade -, conhecido bairro residencial de Campinas, interior de São Paulo, ia vendo pouco a pouco seus moradores deixarem suas casas em direção a bairros mais afastados.
Cada uma das residências de todas as ruas do bairro iam dando espaço a conjuntos empresariais, consultórios médicos, estacionamentos, lojas de carro, padarias e um Subway. E pra quem havia sido uma criança gorda, aquela tentação próxima de minha casa era um ultraje, maior até que a especulação imobiliária.
Até aquele momento era impossível para qualquer pessoa com dezoito anos de idade, espinhas e toda ira juvenil de manifestante do proletariado imaginar o que se passava à minha volta. Me esforçava para aumentar o conhecimento literário, antropológico, sociológico, político e econômico de todas formas possíveis mas, ainda assim, assistia perplexo às mudanças que meu bairro – aquele pedaço de tijolos, concreto, placas, letreiros e nomes de rua que eu não sabia a origem – sofria.
Procurando sair vencedor deste embate ganancioso contra “o capital” – invoco aqui a paternidade do termo usado à exaustão por Luciana Genro -, segui à risca a cartilha das próprias imobiliárias e troquei o nome do bairro. Com a cidade crescendo na rapidez dos passos do cavalo branco de Napoleão, tornava difícil determinar onde um bairro começava e outro terminava. Além do que, a própria estratégia era esta, trocar o nome de uma porção de terra ainda recheada de residências e dizer que eram bairros diferentes. Ficava muito mais bonito nos letreiros comerciais.
Do Castelo fui pro Guanabara, Jardim Chapadão, Bonfim, Botafogo. A própria correspondência que chegava em casa não se decidia em que região da cidade eu morava. Do contra que sou, voltei pro Castelo, mesmo que os Correios discordassem de mim. Ora, lá se era o carteiro que sabia da minha vida.
Assistia perplexo às mudanças que meu bairro – aquele pedaço de tijolos, concreto, placas, letreiros e nomes de rua que eu não sabia a origem – sofria.
Com a expansão da cidade e do comércio no bairro, cada ano que passava os amigos por perto diminuíam. Diminuía também a presença humana ao meu redor. Com dezenove, eu e meu amigo mais próximo trocávamos confidências através das janelas de nossos quartos, separados por um muro de três metros e meio de altura e duas grades, uma em cada janela. Virei a versão burguesa do refém da modernidade.
Nesta nova realidade, minha maior diversão era caminhar pelas ruas desertas do bairro durante a madrugada. Naquele tempo sem dúvida a maior ameaça, às três da madrugada, seríamos eu e meus amigos. E foi numa dessas andanças que conheci o Canadá. Não o país, mas um segurança da pizzaria do bairro.
Canadá era algo mágico no meio daquele mundaréu de placas de aluga-se. Vivendo parte do dia – e da noite – sob efeito de psicotrópicos, ele vivia em um mundo que não era o mesmo que o nosso. Em um de nossos diálogos, tive a oportunidade de ouvir, entre risos, confesso, que ele se drogava pois assim era a única forma de que, em vida, ele conseguiria subir as montanhas de Pedreira – cidade também do interior paulista, conhecida pelo porcelanato e onde nascera – para enxergar o Canadá – daí o apelido -, terra repleta dos “aucaliptos”.
Talvez nem o Canadá – personagem desta crônica – nem eu, soubéssemos na época que fora ali meu último contato com alguém que sonhava, fossem lá os métodos utilizados por ele para isto. Este episódio refletiu de maneira ímpar na minha visão sobre o que acontecia no meu bairro, como o sonho da riqueza, representado pelo transformar de residencial em comercial um bairro tão antigo quanto belo, tornava triste tudo em minha volta. Notei então que o tempo não esperava que tivesse certeza dos rumos a serem tomados, tornando aquele crescer – meu, não da cidade ou do bairro – algo mais duro, difícil.
Passados quase quatorze anos deste episódio, me peguei pensando em que lugar estaria o Canadá e em que situação. Se havia chegado o momento em que teria que enfrentar a realidade e a responsabilidade de ser um adulto, da mesma forma que eu e meus amigos, ou se ainda sonhava em ver os “aucaliptos” do alto da sua imaginação naquele Castelo, hoje, tomado pelo vazio existencial dos CNPJ’s. Espero que a crueldade do tempo não tenha tirado dele – e nem de mim – o prazer em sonhar.