Saio do banco no horário do almoço com aquela cara de quem está com menos dinheiro do que quando entrou. Espero o trânsito dar um tempo para poder atravessar a rua fora da faixa, de forma ligeiramente irresponsável.
O vento avisa que o frio de maio demorou, mas chegou. Há um leve cheiro de guarda-roupa embolorado no ar, sinal de que Curitiba resolveu colocar o mesmo cachecol do ano passado.
Um mendigo dorme numa das calçadas da Capital Social e ao seu lado um boné de casa de construção escancara a bocarra exibindo dúzias de moedas e de notas milimetricamente amassadas.
O trânsito ainda naquele vai não vai, o pessoal meio nervoso. Os bostas e suas buzinas.
Entre um “anda seu filho da puta” e um “ah, vai tomar no teu cu” dos “Dirigido por mim, guiado por Deus”, eis que uma velhinha toda elegante vem pela calçada e se aproxima lentamente do leito do mendigo. Ela para (para de parar mesmo, pois mataram o coitado do acento diferencial) e observa a cena. Tudo muito normal até que ela se agacha e, (Vai deixar umas moedas miúdas, daquelas pra novena de quarta-feira que aplacam um pouquinho de culpa cristã, certeza.) com as mãos vazias, começa a tirar o dinheiro de dentro do boné na cara dura.
Subitamente me imagino dentro de um quadro idiota do Fantástico e fico me questionando se por acaso estão nos filmando. Cadê o Ernesto Paglia? Tá dentro daquele utilitário com adesivo “Eu Apoio a Lava Jato”?
Subitamente me imagino dentro de um quadro idiota do Fantástico e fico me questionando se por acaso estão nos filmando. Cadê o Ernesto Paglia? Tá dentro daquele utilitário com adesivo ‘Eu Apoio a Lava Jato’?
Aparentemente o destino não é do tipo que usa Facebook e sabe o que é ironia, pois ele achou de me colocar na situação de Pessoa Mais Próxima de Um Ato de Injustiça, que é aquela cidadão para a qual todo mundo que não está fazendo nada olha e se pergunta “Nossa, que absurdo, será que ele não vai fazer nada?”.
Um casal que está passando diminui o passo, a moça cutuca o ombro do cara “olha, lá a lazarenta roubando o mendigo”. Algumas pessoas se amontoam na porta do banco.
Olham pra mim, pra senhora, pro mendigo e novamente pra mim.
Sinto um embrulho no estômago. Assim como eu, o bife à parmegiana não reage bem à situação. (Será que o namorado da guria tomará uma atitude antes de mim e todo mundo ficará me olhando como seu eu fosse um bosta? Faça alguma coisa, agora!).
A tarde começa a ganhar contornos de irrealidade.
O trânsito finalmente para e eu não atravesso.
O mendigo dormindo.
A mulher pegando o dinheiro.
As pessoas nos olhando.
(Puta merda não é possível que ela tá fazendo isso.)
Alguém, que hipoteticamente deveria ser eu mesmo, deveria fazer alguma coisa.
Agora.
Dou um passo para o lado para ver melhor e para que a mulher agachada veja que eu estou vendo e que o casal está vendo e que o planeta Terra está vendo. Mas ela continua pegando as moedas.
(Que desgraçada)
Mas veja bem.
Vejamos o que eu vejo.
Em verdade eu vos digo: Ela não está roubando, está apenas empilhando as moedas em cima das notas que acabou de desamassar. Como está ventando muito, a senhora não quer que o dinheiro do coitado saia voando por aí enquanto ele está lá abandonado dentro de si em seus sonhos etílicos.
Assim que termina esse processo cuidadoso, a senhora coloca a mão na cabeça do mendigo, faz uma breve oração, se levanta, limpa os joelhos e entra em silêncio no banco. As pessoas desviam da troca de olhares constrangidos e seguem seus rumos.
O trânsito volta a ficar um inferno e tenho que esperar.
Enquanto isso, procuro no meu bolso uma moedinha que aplaque a minha culpa cristã.