Há alguns anos dei um jeito de inserir a literatura nas minhas aulas que não necessariamente continham este tema na ementa. Nada ilegal, fique tranquilo Sr. MEC, o que fiz foi utilizar os romances como uma ferramenta didática para trabalhar leitura, escrita e oratória, elementos básicos de qualquer currículo envolvendo técnicas de comunicação e português instrumental no ensino superior.
É um troço bem simples, a cada semestre atualizo uma lista com uns 30 romances, conto para a turma o enredo de cada um deles e aí o aluno fica livre para escolher aquela história que mais lhe chamou atenção para escrever uma resenha, que posteriormente será apresentada para todos. Ali na frente dos colegas, eles precisam expor as reflexões que fizerem a partir da leitura e defender seus posicionamentos críticos com relação à obra.
Parece meio inusitado você ver um aluno de engenharia lendo José Saramago, outro de administração lendo Chimamanda Ngozi Adichie ou alguém de logística com um livro do Cristovão Tezza no colo, mas sabe que tem funcionado? Tenho ex-aluno que provavelmente nem lembra mais o meu nome, mas que lembram o impacto que aquelas leituras lhe causaram.
Creio que o fator mais importante e que tem feito esse trabalho dar mais ou menos certo é a variedade de livros de diferentes gêneros disponíveis para escolha. Neste pequeno universo de 30 obras, procuro inserir alguns clássicos (incrível como essa galera adora Vidas Secas e A Outra Volta do Parafuso, por exemplo), mas tento priorizar os autores contemporâneos como os citados acima. Fora isso, pra quem não está acostumado a ler, encontrar um livro que tem uma linguagem parecida com aquela utilizada no dia a dia, de maneira até meio informal, é como se deparar com um oásis. Nesse sentido, livros como Feliz Ano Velho, A Vida Financeira dos Poetas, Suicidas, Clube da Luta, Luzes de Emergência Se Acenderão Automaticamente, A Contadora de Filmes, etc operam verdadeiros milagres.
Pra quem não está acostumado a ler, encontrar um livro que tem uma linguagem parecida com aquela utilizada no dia a dia, de maneira até meio informal, é como se deparar com um oásis.
Os temas contam muito, também. Já presenciei apresentações emocionantes de livros como Matadouro 5 e É isto um homem?, que falam sobre a Segunda Guerra Mundial. Mais recentemente, deparei-me com uma turma que acabou ficando fascinada pela Svetlana Alexijevich, vencedora do prêmio Nobel de literatura, após uma equipe falar alguns minutos sobre o desconcertante Vozes de Tchernóbil.
Muitos esperam que uma faculdade ensine o aluno a ser um bom funcionário, um bom líder. Ok, isso parece ser o correto, já que os olhos estão sempre voltados para o mercado de trabalho, mas é tão pouco, né?
Talvez estes olhos pudessem aproveitar a ocasião para enxergar, além do futuro emprego, a sociedade da qual por acaso eles também fazem parte. O ensino é uma chance poderosa de mostrar que além de nos tornarmos os melhores profissionais de nossas áreas, também pode ser importante tentar aprender a sermos melhores como gente, melhores como cidadãos, sermos pessoas que conseguem perceber e respeitar as diferenças uns dos outros (um discurso que as redes sociais já engoliram e regurgitaram há bastante tempo até quase o tornar inócuo).
Não, esse tipo de comportamento nem sempre vem de casa e é perfeitamente possível aprendê-lo. Às vezes você pode entender muito melhor o que significa empatia ao se envolver afetivamente com um personagem de um livro de ficção que leva uma vida completamente diferente da sua, com valores diferentes dos seus, do que com as explicações de palestrante cheio de truques de oratória e termos em inglês. Enfim, o meio acadêmico é um ambiente em que temos a possibilidade de ensinar e aprender que não somos apenas o que está escrito em nossos crachás.
Retomando a questão da resenha, é lógico que este trabalho não dá certo com todos os alunos. Alguns livros não foram escritos pra gente, pelo menos não para aquele momento de nossas vidas, e se fizermos a escolha errada na hora errada, aquele trauma de ter lido José de Alencar na quinta série volta com força e fica lá instalado num cantinho da nossa mente, dando o alerta de preguiça toda vez que abrimos uma edição qualquer.
Por outro lado, não foram poucos os alunos a me dizer que gostaram da experiência e que pela primeira vez haviam conseguido ler um romance adulto inteiro. Veja bem, estamos falando de ensino superior. Ok, conhecemos os dados sobre leitura do nosso país e isso nem chega a ser tão chocante. Mas dá pra fazer alguma coisa a respeito, né?
E é isso que tenho tentado nestes últimos anos: trazer a literatura pra vida de pessoas que por algum motivo nunca deram muita bola pra isso, mas que ao ter acesso a diferentes tipos de livros, de linguagens, de visões de mundo, talvez consigam perceber a grandiosidade daquilo que estava perdendo.