As pessoas que sofrem de uma doença chamada bibliofilia – termo científico utilizado para descrever o impulso sexual por livros (mentira, nem é doença e nem é sexual, é só amor mesmo, mas nada contra a tara alheia) – precisa lidar diariamente com situações de perigo.
“Vou ali na livraria só pra compra um Chamequinho”, por exemplo, é uma frase falsa, cheia de más intenções disfarçadas de pureza, pois todo mundo que te conhece sabe que na verdade você sairá de lá com a resma de sulfite, mas também com uma nova edição de um livro do Philip Roth que já tinha na sua coleção e com o livro de estreia de uma escritora nigeriana que todo mundo elogia, mas que você não sabe escrever o nome, e com uma edição do último vencedor do Pulitzer, e com aquela coletânea de poemas daquele poeta marginal que você descobriu no Facebook e que portanto nem é tão marginal assim.
Quando um bibliófilo entra num sebo ou numa livraria é como se ele fosse a Alice caindo lá naquele buraco onde o coelho se enfiou, só que em vez de mãos tentando lhe agarrar durante a queda, são os livros que começam a saltar da estante, não por telecinese, já que o bibliófilo é inocente, mas de forma espontânea. Eles simplesmente se jogam das prateleiras, aqueles cretinos. Quando o pobre coitado se dá conta, lá está uma pilha de livros que não condiz com os seus rendimentos e muito menos com o espaço em sua casa.
O cidadão que é apaixonado por livros também sofre com as artimanhas satânicas da publicidade, é claro. Às vezes você está navegando na internet só para tentar esquecer o sentimento de culpa por ter dizimado o 13° comprando a caixa com o teatro completo do Shakespeare, quando se depara com promoções agressivas que só sabem jogar com as nossas fraquezas após bisbilhotarem nossas andanças nas redes sociais. Inclusive, se a Cosac Naify não tivesse morrido, era muito provável que eu acabasse vendendo a geladeira da minha mãe, tal qual um usuário de crack, só pra comprar algum box do Tolstói.
O caso é que nenhuma propaganda, nenhum book trailer, nenhum passeio aleatório no sebo, nenhuma dessas resenhas excelentes que são publicadas n’A Escotilha (#ad), nenhuma citação em entrevista ou review no Skoob são mais convincentes e eficientes nisso de nos fazer torrar nossos parcos quinhões em livros do que uma ação bem simples: a indicação de um amigo.
Quando um bibliófilo entra num sebo ou numa livraria é como se ele fosse a Alice caindo lá naquele buraco onde o coelho se enfiou, só que em vez de mãos tentando lhe agarrar durante a queda, são os livros que começam a saltar da estante.
O Antonio Candido poderia lhe contar toda a relevância histórica de uma obra clássica brasileira, detalhando todos os aspectos técnicos que a tornam tão incrível. O Harold Bloom poderia ficar até meio molhado comentando de forma muito empolgada os detalhes magníficos da obra do Bardo Inglês. Mas provavelmente tudo isso não seria tão poderoso, do ponto de vista de convencimento, quanto se um amigo seu, em quem você confia na opinião, lhe dissesse, “Cara, esse livro é muito foda!”.
Estou longe de ser um Roberto Carlos, mas mesmo não tendo um milhão de amigos, conheço um tantão de gente que gosta de livros. E isso é um inferno. É bem difícil sair ileso de uma conversa em que as pessoas estão entusiasmadas com alguma obra interessante ou depois de ler algum tweet simplesmente elogiando um autor meio desconhecido. A tendência é você conferir o saldo no banco e depois dar uma fuçada no site da livraria, “só pra dar uma olhadinha na sinopse”.
Meus professores me indicaram muitas leituras excelentes durante as aulas que tive, mas boa parte dos melhores livros que li na vida foram recomendações de amigos. E olha que às vezes eu nem estou na conversa, mas só de ouvir/ler um elogio o bicho da bibliofilia já começa a se agitar.
Embora a leitura seja uma forma de praticar solidão, no momento em que você se depara com algo bonito, engraçado, comovente, perturbador, enfim, algo que lhe tira do eixo, um dos primeiros pensamentos a surgir é “Fulano de tal tem que ler isso aqui também. A gente precisa conversar a respeito”. A ânsia de partilhar a leitura, muitas vezes, é uma vontade de confirmação e de validação de impressões bem subjetivas, mas é principalmente um profundo desejo de vivenciar as mesmas sensações pelos olhos do outro, de fazer com que aquele momento bacana reverbere em quem a gente gosta. Acho que amizade é um pouco disso, né?
E por falar nisso, você já leu o Linha M, da Patti Smith? Cara, esse livro é muito foda.