Em março de 1964, Kitty Genovese, uma americana de 29 anos, foi assassinada a facadas próxima de sua casa, no Queens, em Nova York. As circunstâncias de sua morte foram tão inusitadas, que acabaram inspirando vários livros, reportagens, filmes e pesquisas.
Tá, mas o que aconteceu de tão diferente, afinal?
À noite, após estacionar o seu carro, ela se dirigiria para o seu apartamento, quando um homem a abordou na calçada e lhe desferiu algumas facadas nas costas. Seus gritos de horror se espalharam pelo bairro.
E aí?
E aí ninguém fez nada. Ninguém foi socorrê-la, ninguém gritou, ninguém chamou a polícia. Nada. O agressor correu, a vítima se arrastou por mais alguns metros e como não apareceu nenhuma pessoa para ajudá-la, mesmo depois de vários minutos após os primeiros gritos, o assassino e estuprador retornou para finalizar o trabalho.
Segundo um famoso artigo publicado duas semanas depois no jornal The New York Times, 38 pessoas testemunharam o assassinato e ninguém fez absolutamente nada, todos voltaram a dormir como se fosse uma noite qualquer.
O fenômeno, essa paralisia coletiva diante de uma situação de perigo que a princípio exigiria algum tipo de reação rápida e básica, foi estudado e passou a ser chamado de “síndrome de Genovese” ou “Efeito Espectador”. Jogue isso no Google e se farte com o material.
Enfim, essa história é tão fascinante que parece até ficção. E é mesmo. Pelo menos é o que defende o excelente documentário The Witness (2015) que mostra o irmão da vítima, Bill, entrevistando as testemunhas e investigando por que diabos ninguém ajudou a sua irmã naquela noite horrível? Bill acabou descobrindo que as coisas não aconteceram exatamente como foram descritas no artigo NYT e que talvez a realidade tenha sido distorcida para vender mais jornal.
Não contarei o final do filme aqui, mas o caso é que a sociedade deu jeito de encaixar aquela mentira tão fantástica em sua realidade de maneira bastante confortável, dando inclusive explicações científicas para um fenômeno inexistente e chegando até mesmo a inspirar episódios de série como Lei & Ordem, baseados em “fatos reais”.
Além da questão maquiavélica de explorar uma tragédia de forma descaradamente comercial (olá, Datena), o documentário nos faz pensar sobre o nosso desespero em tentar manipular a realidade para que tudo absolutamente faça sentido. É aquilo de forçar explicações pra coisas que ainda não temos respostas plausíveis.
Às vezes a realidade é mais simples do que parece. O duro é aguentar o peso dessa simplicidade.
Digo tudo isso, porque também já tentei encaixar respostas forçadas para explicar algo que fiz. Ou que não fiz.
Certa vez eu caminhava pela rua e uma mulher caiu a alguns metros de mim, tendo um ataque epiléptico, próximo a um ponto de ônibus e a minha reação foi: nenhuma. Durante uns 15 segundos eu só fiquei olhando, até que outras pessoas que estavam mais distantes se aproximaram e a ajudaram. Veja bem, não era o caso de não saber o que fazer, pois eu sabia muito bem que era importante colocar alguma coisa debaixo de sua cabeça para que ela não se machucasse com os espasmos, virar o corpo um pouco de lado para evitar se afogar, etc. Não sei direito por que não fiz nada (ou talvez apenas tenha medo da resposta), só sei que não fiz.
A reação das pessoas ao redor foi tão rápida, que a minha estupidez acabou passando batido pra multidão que foi se aglomerando. Mas eu sabia, eu sentia a culpa soltando tinta e manchando e intoxicando meu peito. Algo muito errado havia acontecido ali e aquilo iria me marcar profundamente. Anos já se passaram e até hoje sinto uma profunda vergonha por aqueles 15 segundos em que fui um completo covarde.
Hoje, vendo The Witness, acreditei durante alguns momentos que havia uma explicação científica para a minha atitude naquele dia, uma chance de que eu não fosse só um imbecil e que uma reação química havia me levado àquilo, mas o documentário tratou de esmigalhar as minhas esperanças.
Às vezes a realidade é mais simples do que parece. O duro é aguentar o peso dessa simplicidade. O que alivia é saber que o mundo é feito de gente muito melhor do que nós.