Mesmo antes do advento da selfie, nossa atenção já estava voltada para a própria imagem há muito tempo, o celular com câmera apenas potencializou a exposição de nossas vaidades, ou nossa capacidade de praticar a vergonha alheia e espalhá-la por aí.
Nestes tempos em que os olhos estão voltados para si mesmos através de espelhos portáteis e prontamente compartilháveis, a palavra pode ser percebida como uma forma de resistência.
Não aquela resistência do tipo: Ah é? Você postou uma selfie com legenda de passagem bíblica? Então toma aqui um textão sobre ciclovia na sua cara. Penso mais na pausa e na reflexão que um texto exige, mesmo que não seja dos mais profundos.
Mais do que uma foto, mais do que o vocabulário do dia a dia, às vezes parece ser precioso criar uma nova linguagem para explicar a dor.
O escritor americano, Ted Chiang, escreveu um conto de ficção-científica chamado “Entenda” (publicado na coletânea História de sua vida e outros contos) em que o homem tenta desenvolver uma superinteligência artificial. O leitor acompanha a evolução desta experiência através do ponto de vista do próprio sujeito cujo cérebro foi modificado. Num dado momento, seus pensamentos estão tão avançados, seu raciocínio alcançou níveis tão complexos, que ele precisar criar uma nova língua, muito mais sofisticada, para conseguir se expressar.
O personagem precisava de novas palavras para dar vazão ao seu mundo interior. Não tinha como ele tirar uma selfie daquilo que passava em sua cabeça, era preciso traduzir e organizar aquilo tudo através de algum tipo de linguagem que ainda nem existia.
Em casos de tragédias, como a que o Brasil viveu essa semana com a queda do avião do time da Chapecoense, essa questão fica ainda mais evidente. Repare: embora as imagens de destruição abundem de forma um tanto constrangedora nos meios de comunicação, são os textos de pessoas envolvidas emocionalmente com aquilo, pessoas escrevendo sobre suas saudades intraduzíveis, que acabam por dar uma dimensão muito maior e mais profunda do fato.
Neste caso não há o distanciamento da câmera que garante um enquadramento específico, há apenas o calor do verbo que tenta abraçar o indizível. Mais do que uma foto, mais do que o vocabulário do dia a dia, às vezes parece ser precioso criar uma nova linguagem para explicar a dor.
Em dias assim, mil palavras valem muito mais do que uma imagem.