Estava lendo uma HQ autoral intitulada Quadros, de um artista pernambucano chamado Mike Deodato Jr (que já trabalhou para Marvel e para a DC), com várias histórias escritas e desenhas em estilos diferentes, quando me deparei com um desenho que ocupava uma página inteira: era só um garoto comum, jeans e tênis, sentado no chão abraçando os joelhos com um cara meio triste, uma mochila jogada num canto e logo acima dele a frase: “timidez é um grito que não sai”.
Às vezes a arte nos leva para mundos inimagináveis, cheios de surpresas fantásticas, e às vezes ela nos leva para dentro de nós mesmos, num percurso que é um tanto tortuoso, mas que conhecemos de cor, não gostamos da paisagem e que geralmente procuramos contornar, feito quem evita um espelho.
O desenho de Deodato me transportou diretamente para algum ponto lá dos anos 1990. Me vi em diversas situações da infância e da adolescência em que me sentia simplesmente incapaz de interagir com as pessoas. A timidez é uma espécie de solidão auto infligida, se de início ela pode carregar consigo algum charme (o tímido sempre costuma dizer que uma das suas caracterizas é ser “observador”, “na dele”, quando na verdade quer dizer “medroso”, “inseguro”), depois ela passa um ser apenas um problema, algo que dói à sua maneira e que as poucos pode se tornar insuportável conforme as necessidades das relações sociais diárias vão se tornando pequenos pesadelos.
Às vezes a arte nos leva para mundo inimagináveis, cheios de surpresas fantásticas e às vezes ela nos leva para dentro de nós mesmos.
Por exemplo: Um círculo de pessoas em uma situação qualquer, um treinamento, um debate, tanto faz, cada pessoa tem que se apresentar, a sua vez vai chegando, as mãos começam a suar, o coração acelera, as mãos tremem de forma constrangedora e bate uma vontade enorme de fugir.
Mas o problema pode ser bem maior, não é só não conseguir dizer quem você é num grupinho de desconhecidos ou de ser incapaz de chegar na guria por quem você se apaixonou na quinta série. É não saber o que falar numa roda de amigos, mesmo daqueles que lhes são íntimos, pois suas histórias não são tão engraçadas, é ter medo de conhecer pessoas novas (que certamente te acharão um imbecil ou meio analfabeto), é não conseguir apresentar um trabalho simples na frente da turma e se sentir um idiota por causa disso, é perder uma oportunidade de emprego pela falta de controle emocional durante uma entrevista, é não conseguir defender o seu ponto de vista numa reunião importante em que alguém só está falando merda, é não conseguir expressar o que sente, as palavras enroscadas num nó de marinheiro no meio da garganta, é guardar para si ideias que talvez fossem relevantes, é fingir que não é arrogante e não se acha “especial” ou “diferente” por ser calado, pra disfarçar o pânico e a certeza de ser como um outro qualquer, só que mais cuzão, é ter pavor de ser notado e agir de uma maneira meio imbecil que acabará atraindo mais atenção ainda.
O poeta Diego Moraes tem um verso que diz “A solidão é um deus bêbado dando ré num trator” (que inclusive é o nome de um dos seus livros), e essa solidão que a pessoa tímida enfrenta é um pouco assim, é algo que pode ser devastador dado o seu descontrole, embora aos olhos dos outros pareça tão simples, apenas uma frescura. Na verdade, há um peso bastante simbólico, pois trata-se de uma sensação permanente de não conseguir ser aquilo que se é, como se houvesse uma versão de você, a sua melhor versão, que as pessoas nunca irão conhecer.
Como o destino tem essa mania de ser todo irônico e engraçadão, acabei me tornando professor, logo eu, um tímido incurável, tendo que falar em público profissionalmente. É possível, vejam só. Passo as minhas noites em pé, falando várias groselhas para alunos que às vezes até prestam atenção naquilo que estou dizendo.
Não venci a timidez, nem nada assim. E também não me saio muito bem, só dou pro gasto naquilo que a profissão exige. Também não tem receita e muito menos uma mensagem de superação aqui no final do texto. Virar um professor foi só uma coisa que eu tinha que fazer (afinal, eu tinha estudado pra isso), aí fui lá e fiz. Me cagando de medo, suando, tremendo, mas fiz. Mas essa é a minha história, que não serve de exemplo pra ninguém, já que cada um tem a medida do seu mundo.
Só sei que depois de alguns anos me acostumei com os alunos e hoje dou minhas aulas com relativa tranquilidade. A timidez apesar de tudo ainda está ali, quase controlada, mas tentando escapar em alguns momentos, através das palavras que desaparecem antes de serem ditas. Aquela solidão e aquela dor presente no desenho do Deodato reforçaram essa consciência e essa memória. Às vezes é bem difícil fingir que esse peso não existe.