Girou a lâmpada levemente. Surgiram a mesa e as cadeiras, a pia com louça por lavar, o quadro do Sagrado Coração e a foto do casamento que acabou.
Por que o porta-retratos ainda estava lá? Todos sabiam que ele não voltaria mais.
Pegou três copos e colocou-os sobre a mesa. Esfregou um pano úmido em cada um, ergueu-os para o teto, olhou o fundo: estavam limpos.
“Vão se arrumando que já tá na hora, vamo, vamo…”.
Retirou a caixa de leite de dentro do armário. Mediu dois dedos e derramou o líquido no primeiro, no segundo e no terceiro; sobrou um pouco – mais um dedo de leite para cada copo então. Agora estava bom.
Esticou o pescoço inclinando-se para o quarto: nenhuma das crianças estava olhando. Foi até a torneira e completou os copos com água. Ficou fraquinho…
Ainda sonolentas e preguiçosas, as crianças se aproximaram. O calor das cobertas se dissipando nos uniformes gelados.
Esticou o pescoço inclinando-se para o quarto: nenhuma das crianças estava olhando. Foi até a torneira e completou os copos com água. Ficou fraquinho…
“Agora sentem aí e tomem bem direitinho”.
“Ué, num tem mais bolacha?”
“Hoje não, aí vocês comem na escola”.
“Você vai na Marlene de tarde?”
“Ela falou que não precisa mais de diarista, aí eu vou ver se arrumo outra casa hoje”.
“Ah, tá”.
“Na agência deve ter alguma coisa”.
“É, deve ter”.
O menor virou um golão:
“Tá gostoso, mãe!”
“Então está bem, meu amor.”
Os três, sem bigodes de leite, terminaram e colocaram os copos na pia, pegaram cada um a sua mochila e partiram.
“Tchau, mãe”.
“Tchau, vão com Deus”.
Ainda estava um pouco escuro. Ela ficou encostada na janela até eles atravessarem a ponte de madeira. Era uma pinguelinha toda podre, uma guria caiu de lá semana passada, reviraram o esgoto e ninguém achou, a avó aos berros no barranco.
Depois puxou uma cadeira, sentou, alcançou a caixa de leite com foto de criança desaparecida e a chacoalhou. Vazia, a última.
Apoiou os cotovelos na mesa e cobriu o rosto com as mãos: quase nada de unha para roer, os dedos tremendo. Respirava com um pouco de dificuldade. Por entre os lábios partidos, quase um murmúrio:
“E amanhã?”.