Depois de duas horas de indecisão, a voluntária do abrigo de animais desistiu de ajudar e resolveu deixar Clóvis à vontade com os cães, para fazer sua escolha sozinho. Mas ele demorou um pouco para perceber que estava só, já que podia ouvir alguém no fundo do canil falando “me leva, me leva, me leva, me leva”.
Percebeu que não tinha visto os cachorros do corredor à esquerda e foi olhá-los, sentindo a voz cada vez mais alta e estridente, “me leva, me leva”. Quando chegou perto da última gaiola, levou um susto.
– Me leva, me leva, me leva, me leva, me leva!
– Puta que pariu! Isso é pegadinha?
– O que é pegadinha? Eu quero uma pegadinha. Eu gosto de pegadinha. Me leva pra ver a pegadinha, por favor, por favor, por favor.
– Sério, eu estou sendo filmado? Só pode ser coisa do Silvio.
– O que é silvio? Me escolhe pra ter um silvio, me escolhe, me escolhe. Eu gosto de silvio. Por favor, por favor, por favor.
– Cara, eu não sou idiota. Cachorro não fala. Já pode parar, produção, não vou cair nessa.
O que é silvio? Me escolhe pra ter um silvio, me escolhe, me escolhe. Eu gosto de silvio. Por favor, por favor, por favor.
Olhou para cima, como se procurasse as câmeras.
– Eu não queria assustar você, desculpa, me desculpa, por favor, me desculpa. Eu estou animado porque hoje pode ser o dia, pode ser o grande dia, um dia grandão e lindo! O dia que eu vou ter um papai e uma casinha no jardim e um osso bem bonito. Desculpa, me desculpa, me desculpa.
– Para de se desculpar. Eu não assustei, porque eu sei que é uma brincadeira.
– Eu gosto de brincadeira, eu adoro brincadeira, vamos brincar?
– Não é possível.
O cachorro pulava eufórico, abanando o rabo, enquanto Clóvis o olhava desconfiado.
– Você vai me escolher? Me escolhe, me escolhe!
– Tá, vamos jogar um jogo.
– Oba! Jogo, adoro jogo, vamos brincar de jogo, me escolhe.
– O jogo é de pergunta e resposta. Vamos supor que você seja mesmo um cachorro falante.
– Vamos supor, você começa, pode supor! Nunca fiz nada de supor, vou adorar supor!
– Como ninguém percebeu até agora que você fala?
– Não falo nunca, nunquinha, só agora, quero falar sem parar, fala comigo.
– Você não sabia que podia falar?
– Não sabia, agora eu sei, sei sim, eu sei falar. Vamos falar?
– Calma, fica calminho. Para de pular um pouco, senta e me conta com calma.
O cachorro se sentou.
– Comecei quando você chegou porque eu ouvi a sua voz e fiquei muito feliz. Feliz, feliz, feliz.
Começou a pular novamente.
– Gostei dela, gostei da voz, agora estou assim, quero pular, me escolhe, me leva, por favor, por favor!
Clóvis sorriu e acariciou o cachorro, até que ele ficou calmo – mas sem parar de abanar o rabinho por um segundo; eles tiveram uma conversa sincera por mais alguns minutos e, após eliminar a hipótese de ser vítima do Silvio Santos e aceitar que aquela loucura estava mesmo acontecendo, Clóvis o escolheu como novo melhor amigo. Seria o criador de um cachorro tagarela.
– Eba! Você vai me adotar! Eu vou ser adotado, muito adotado, que dia cheio de adoção, você vai me levar, vamos brincar?
– Primeiro, vou apresentar seu nome: a partir de agora você se chama Falante. Que nem o grilo do Pinocchio, numa versão maior. E com mais felicidade, eu acho.
Enquanto Clóvis preenchia a papelada, Falante saltava de um lado para o outro, com uma alegria que arrancava sorrisos de todos os que estavam perto.
Saíram do abrigo lado a lado, dando início a uma amizade que duraria uma vida inteira, mesmo que Clóvis tenha ficado confuso logo na manhã seguinte: depois daquele dia, Falante nunca mais falou.