O limpador de para-brisa fazia um barulho chato e repetitivo.
– Você não vai falar nada até a gente chegar? Uma palavra?
– Tô bem assim.
– Não interessa se você tá bem, você vai me explicar o que aconteceu.
– Para de me tratar que nem criança, mãe.
– Ana, eu acabei de buscar você na administração do shopping!
– E daí?
– E daí que você tem 30 anos!
Parou no semáforo e bufou.
“E daí que você tem 30 anos!”
– Vai, Ana, desembucha. Quero saber exatamente o que aconteceu.
– Eu só quero chegar em casa, mãe, só isso.
– E eu só vou dar carona até a sua casa se você me der explicações.
– A explicação é a que eu já falei: eu estava com fome.
– Ana, você atacou um segurança!
– Eu não ataquei ninguém.
– Pular nas costas de uma pessoa não é atacar?
– Ele ia jogar a batata frita no lixo! Era minha, eu estava com fome, ele me impediu de comer e ia jogar fora! Eu só tentei pegar de volta o que era meu.
– Ana!
– É verdade!
Deu a seta e entrou à direita.
– Vamos começar do princípio?
– Tá.
– Por que o segurança ia jogar a sua batata frita no lixo?
– Porque ele foi brigar comigo e eu rebati.
– E por que ele foi brigar com você?
– Porque a moça que estava na mesma mesa que eu foi reclamar de mim pra ele.
Buzinou para um pedestre desligado que surgiu no meio da rua.
– Moça? Que moça? Ana, a minha paciência já chegou ao limite. Faz favor! Conta isso direito, desde o começo.
– Foi assim, mãe: eu tive um dia de merda na empresa, de novo, estava verde de fome e merecia comer algo bem gorduroso, certo?
– Certo.
– A Dani me deixou no shopping. Cheguei na praça de alimentação e tinha mais gente ali do que no show dos Rolling Stones em Copacabana. Respirei fundo, xinguei algumas pessoas mentalmente e entrei numa fila enorme. Eu fiquei quase uma hora na fila, mãe. Fast food meu rabo, dava pra ouvir de longe o pedido de socorro do meu estômago.
– Eu ainda não entendi como isso vai chegar na administração do shopping.
– Você pediu do começo, não pediu?
Reduziu para trinta por hora, seguindo atrás de um caminhão.
– Pedi.
– Então. Fiquei mais uma meia hora na outra fila e, finalmente, me chamaram. Olhei pra bandeja: nada a ver com o que eu pedi. Misturaram tudo, ninguém sabia me explicar o que tinha acontecido, me pediram pra esperar num canto. Esperei. Meu estômago chorava sangue.
– Certo, dramática.
– Me chamaram de novo e o pedido estava certo dessa vez. Peguei a bandeja como se fosse um Oscar, cheia de emoção, dei um passo e uma mulher esbarrou em mim e derrubou tudo.
– Meu Deus, Ana!
– Eu tive que voltar lá, explicar a situação e esperar fazerem um novo lanche. Até aí o meu estômago já tinha parado de funcionar porque ele se esqueceu como fazia.
– Tá. E aí?
– Aí eu peguei a nova bandeja depois de tudo isso, comecei a andar e percebi que não tinha onde sentar. Não havia absolutamente nenhum lugar, eu rodei aquela praça inteira e nada. Até que eu vi uma cadeira vaga na mesa de uma família, fui lá e sentei.
Freou.
– O QUE? Você sentou na mesa de uma família desconhecida?
– Qual é o problema? Eu estava prestes a morrer de fome, não aguentava mais, precisava comer. E a cadeira estava vaga, oras.
Voltou a acelerar vagarosamente.
– Mas o que você falou?
– Nada.
– Nada?
– Nada, eu sentei e comecei a comer. Foi um momento de realização.
– Ana! Você perdeu a cabeça de vez!
– Se você tivesse vivido o dia que eu vivi, você também teria perdido, meu bem.
– Então, a mulher desconhecida da mesa que você invadiu simplesmente levantou e foi chamar o segurança?
– Não, primeiro ela me olhou horrorizada, como se eu fosse o Jason, e deu um grito. Aí eu fiz um sinal pedindo pra ela diminuir o tom, porque eu estava com dor de cabeça, né? Porra, não desrespeitei ninguém.
– Eu não consigo acreditar no que estou ouvindo.
– Aí, sim, ela chamou o segurança, ele começou a berrar, eu respondi que estava com fome, ele pegou minha bandeja cheia de batata frita pra jogar no lixo, eu pulei nele, recuperei algumas batatas, ele me algemou e me levou para a administração. Chegando lá, me disseram que eu seria presa.
– E você deu uma carteirada e contou que é filha da proprietária do shopping. Bonito, Ana, bem bonito. Foi essa a educação que eu dei a você e seus irmãos.
– Funcionou, não?
Estacionou.
– Ana, antes de descer…
– Fala logo, mãe.
– Filha, reflita sobre o que aconteceu hoje. Esse trabalho está acabando com você, você está ficando maluca, só trabalha.
– Eu sei.
– Você consegue perceber o que está acontecendo aqui?
– Consigo.
– Então fale alto, coloque pra fora de uma vez: o que está acontecendo aqui?
– Eu ainda estou com fome.