Aproximo-me da menina. Dois anos, se tanto. Começo a brincar com ela, faço graça, sou o perfeito palhaço para ela. A menina ri gostosamente. Todos se voltam para nós e alguém diz: “Ela gosta de você”, e há um tom de surpresa na voz, como se não fosse normal que alguém assim tão, não sei, tão apagado, fizesse esse sucesso todo com uma criança. Sim, ela gosta de mim. Estamos nos comunicando, estamos nos entendendo perfeitamente e é doce ficar ali. Os outros nos esquecem, vão fazer outra coisa, mas eu fico ali, ao lado daquela menina que gosta de mim.
Ah, mas o que é isso? Estão me chamando? Querem me tirar daqui, é claro. É preciso “fazer um social”, não é assim que eles dizem? Preciso ir lá e ficar sentado falando sobre o tempo, sobre a política e o preço nos supermercados. Onde é que já se viu um adulto sair para visitar outros adultos e gastar o tempo todo ao lado de uma criança de dois anos? Um adulto deve se portar como adulto. Pode olhar a criança, pode fazer uns agrados, deve elogiar, mas só por algum tempo, depois é preciso voltar ao mundo sério das pessoas grandes. Pouco importa se o adulto não se entende tão bem com os adultos como com essa criança de dois anos. Olhem só para ela! Ela se diverte comigo, eu a faço rir e ela me quer por perto. Da minha parte, ajo com muita naturalidade. Não tento aparentar coisa alguma, não quero convencer ninguém e sei que ela não está me julgando. E agora querem me tirar daqui, dessa experiência que só a muito custo eu consigo encontrar durante a vida!
Essa menina vai crescer, eu sei disso. Não vai se lembrar de nada que estamos vivendo agora. Um dia ela vai perceber que existe alguma coisa estranha comigo, que eu não me comporto como os outros adultos, que mal abro a boca ou que me atrapalho todo para falar, que pareço sempre tenso e pouco à vontade, e então ela terá medo. Eu sei que ela terá medo de mim. Quando eu me encontrar com ela, os pais vão pedir que ela me cumprimente, mas ela não vai querer, ela vai tentar passar reto, só que os pais vão chamá-la de volta, eu direi que não precisa, que tudo bem, mas eles farão questão que a menina me cumprimente, e ela fará isso toda sem jeito, e os pais se desculparão dizendo que “ela é tímida”, mas eu sei que não é timidez nenhuma, é só medo mesmo.
Eu quero que me deixem em paz, que me deixem a sós com essa menina, que a gente fique brincando como duas crianças bobas.
Sei do que estou falando, porque já foi assim com outras crianças, até que elas crescem ainda mais e viram elas próprias adultas, aí me cumprimentam, mas aí já não há nem sinal da conexão que um dia tivemos, aí já somos dois completos estranhos, e só eu me lembrarei daquilo que um dia veio a nos unir.
Deixem-me ficar aqui mais um pouco, deixem que eu prolongue esse momento mais um pouco! É o que eu queria dizer, mas não digo, porque isso iria chamar a atenção para mim, isso faria com que eles pensassem coisas a meu respeito, e eu não quero que pensem nada, eu quero que me deixem em paz, que me deixem a sós com essa menina, que a gente fique brincando como duas crianças bobas. Mas é preciso agir dentro da normalidade, é preciso se afastar, ir à sala conversar, embora a nossa conversa não possa nunca gerar a mesma compreensão que eu tenho ao lado dessa menina. Que não é minha! Não é minha e nenhuma outra poderá ser, é o meu destino ou os meus pecados, ser esse pai órfão de uma filha, se ao menos não tivesse amor nenhum, mas ainda tenho.
Ela é só a menina dos outros, a menina que posso ver de vez em quando e imaginar como é que seria, o que é que se sente quando se tem uma todos os dias na sua própria casa. Faço outra palhaçada, a última, derradeira. E em seguida volto a me apagar.