Entro no ônibus e descubro que já não há nenhum lugar para me sentar. Resmungo, porque eu gosto de aproveitar esse tempo dentro do ônibus para ler e, apesar dos meus esforços, ainda não consigo fazer isso em pé. Encosto-me então em um ferro qualquer e resigno-me com a tediosa viagem que me aguarda. Na tentativa de ocupar o pensamento, começo a observar as pessoas ao meu redor. No banco logo ao meu lado estão sentados dois jovens que falam com as mãos. Meu primeiro pensamento é o de que eles são surdos-mudos, mas então me recordo que o termo correto é apenas surdos. São surdos, pois, estão sentados ao meu lado e conversam com as mãos. Como eles, eu já vi muitos, mas nunca entendi absolutamente nada do que conversavam. Mas decido reparar melhor nos dois.
É um casal, rapaz e moça. Devem estar na faixa dos 20 anos, 22, 23 no máximo. Ela me pareceu muito bonita e o cara até que não é dos mais feios não. Conversam, conversam horrores. Não param de mexer aquelas mãos! Ah, imagine você, Henrique, você surdo. O que é que faria com a sua timidez, com a sua fobia social? Penso então em um mundo de surdos, todos obrigados a olhar nos olhos de cada um, a prestar realmente atenção uns nos outros – quase chego a lamentar que possamos falar e ouvir.
E como ri esse casal! Estão realmente muito felizes. Não faço a menor ideia do que eles estejam falando, mas sem dúvida são coisas muito divertidas. Estão totalmente alheios à viagem e a tudo o que acontece dentro do ônibus, apenas prestam atenção um ao outro. Eles também se tocam bastante em meio às suas brincadeiras. Ela, inclusive, tirou uma sujeirinha do seu próprio rosto com o dedo dele. Dali a pouco teve início, bem ao meu lado, uma notável guerra de cócegas. Como era bom de ver! E tanto fizeram, e tanto se mexeram e se agitaram que acabaram por derrubar a garrafinha de água que ela trazia.
Penso então em um mundo de surdos, todos obrigados a olhar nos olhos de cada um, a prestar realmente atenção uns nos outros – quase chego a lamentar que possamos falar e ouvir.
Foi preciso que um senhor se abaixasse e a entregasse novamente para eles. E então a menina teve uma nova ideia. Pegou a garrafinha, abriu a tampinha e colocou um pouco de água dentro dela. O rapaz olhava, sem entender, até que ela, sem aviso, jogou a água em cima dele! Ah, era uma brincadeira, uma gostosa brincadeira, e eles riam e se divertiam e se abraçavam e se cutucavam e se amavam verdadeiramente ali na minha frente.
Eu, parado em pé diante desse espetáculo, me obrigava a fazer a minha melhor cara de indiferença, que não fosse por minha causa que aquilo tudo fosse interrompido! Fingia, pois, que tudo o que acontecia diante de mim fosse absolutamente banal e corriqueiro, mas a verdade é que eu estava comovido até ossos. Deus, como eu queria que aquela viagem não acabasse nunca, que aquele ônibus seguisse até o fim do mundo, apenas para que eu pudesse continuar observando aquele casal. Só para ficar vendo por mais tempo aquele amor de surdos, aquele amor de quem não precisa usar a boca para falar, aquele amor que me deixou tão, tão, sem palavras…