De vez em quando, eu vejo pessoas mortas em seus sonhos – sobretudo os meus dois avôs. E, coisa estranha, os mortos nunca falam nos meus sonhos. É a maldita lógica que me persegue até quando eu durmo: se estão mortos, não podem mesmo falar. E também não podem ouvir, de modo que eu não os interrogo, deixo que façam as suas coisas normalmente, e nem mesmo dou a entender que eles não fazem mais parte dessa vida. Apenas levo adiante o meu sonho, o meu sono – esta pequena morte – em que os mortos ressuscitam pela força da memória.
Por muito tempo, a indesejável passou longe da minha casa. Esses avôs foram os primeiros da família a morrer, e o fizeram quando eu já tinha 20 anos. Antes disso, nenhum velório, poucas idas ao cemitério – em geral, seguidas de pesadelos e de um desesperado desejo de viver. No ano em que vi meus avôs dentro de um caixão, eu ainda vi dois outros mortos, não em algum velório, mas no necrotério do hospital em que eu trabalhava. Há atribuições inimagináveis para um jornalista, e uma das minhas era fotografar pessoas que morriam sem deixar família ou conhecidos. Se aparecesse alguém para reconhecê-las, mostrava a foto, não o morto.
Depois da experiência com meus avôs, eu já sabia como era um morto, mas uma coisa é ver um morto arrumadinho e cheio de flores ao redor, e outra, bem diferente, é vê-lo sair de uma geladeira, coberto por um lençol e deixando escorrer algum líquido pelo canto da boca. A cena só não causava impressão ao homem que lá trabalhava, forçado pela rotina a subestimar os mistérios da morte. Preparava-se um cenário mais limpinho e então eu focava a máquina em cima do rosto do morto. Ele não se mexia, mas ainda assim acontecia da imagem sair tremida.
“A cena só não causava impressão ao homem que lá trabalhava, forçado pela rotina a subestimar os mistérios da morte.”
Há coincidências tocantes, parece que às vezes o coração para justamente quando a pessoa decide se aposentar, largar alguma coisa que até então era a sua razão de viver. Assim foi com um dos mortos que fotografei, ciclista que percorria o mundo e que pretendia fazer daquela a sua última viagem. Imagino se há um momento em que a pessoa sabe o que vai acontecer, se chega a ter consciência de que é a dita cuja, a inominável, que se prepara para arrebatá-lo.
Um dos meus avôs costumava prever a morte dos outros. É famosa na família a história do dia em que recebeu a visita de um cunhado e depois sentenciou: “Foi a última vez que o vimos”. E quando soube que a sogra havia ido tomar chimarrão na casa da mãe dele, com quem nunca se dera bem, meu avô avisou: “Ela não vai muito longe”. E, de fato, nunca mais viram o cunhado, e a sogra não foi muito longe. A fama do meu avô era tamanha que houve parente que achou melhor esconjurar: “Deus me livre ele falar alguma coisa sobre mim”. Talvez ele intuísse que a morte, adivinhada ou não, leva as pessoas a se despedirem e a se reconciliarem.
Mas isso faz tempo. Hoje a roda da vida já andou de tal forma que o meu próprio avô já está do lado de lá, de onde ressurge apenas eventualmente, quando durmo bem o bastante e ainda consigo me lembrar do que sonhei. Aí nascem reflexões como estas. Se é verdade que os mortos não falam mais, quantas coisas eles ainda são capazes de dizer!