Um dia nasceu Hélio Pellegrino – e nasceu despreparado, sem fortes instintos que o costurassem ao mundo, fazendo dele, desde o começo, a sua casa. A princípio, tentou negar o seu nascimento (fonte e origem da angústia humana) pela fantasia de fusão com a sua mãe. Quando descobriu a função paterna, no entanto, teve que cortar o seu cordão umbilical. Mas – pobre Hélio! – isso lhe deixou uma incompletude que deveria ser sustentada e suportada ao longo da vida. Agora ele era fratura, ruptura, cárie, e foi preciso que, a partir dessa falta, organizasse o seu mundo, domasse a sua natureza, e desse, enfim, um salto qualitativo em direção à cultura, à linguagem e à lei.
Teve início então a época das grandes descobertas, dos deslumbramentos infantis, dos quais o maior talvez tenha sido uma vasta noite estrelada, surpreendida por Hélio nos arredores de Belo Horizonte quando tinha sete ou oito anos de idade. De repente, olhando para o alto, o curso dos astros no céu fez-se tão claro que lhe pareceu audível. Ouviu o fulgor – e o rumor – das estrelas que ardiam. Espantado diante da grandeza do Cosmos, chegou até Deus. Nunca acreditou em um Deus que habita o céu sozinho, abismado na contemplação do próprio umbigo. Deus tem a ver com a sua boca aberta, extasiada diante do mistério de uma flor – ou de um búzio do mar.
Hélio crescia em estatura e graça e conheceu outros jovens, igualmente famintos dos frutos da terra e do rumor do Absoluto: Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos e Otto Lara Resende. Ao lado deles viveu a paixão da amizade e a paixão literária. Naqueles tempos, mais do que em qualquer outro, Hélio era projeto, era futuro, era vir-a-ser e, nesta medida, não era. Pelo trabalho – essa pescaria do ser – consentiu em sua própria existência. Tornou-se psicanalista, compreendeu que, através de duras vicissitudes, a pulsão sexual caminha no sentido do amor. O amor – inclusive aos inimigos – era um princípio pragmático, vacina contra a raiva que garantia sua integridade psíquica e existencial.
É possível que outra experiência infantil tenha contribuído para definir seu posicionamento político. Foi quando percebeu que os enterros, com caixões entalhados e debruns de ouro fúnebre, constituíam rendoso negócio para as funerárias. A desgraça de uns constituía a condição necessária e suficiente para o deleite de outros. Durante dias pensou no assunto e chegou a imaginar uma história policial em que um agente funerário, ávido de lucros, espalhava pela cidade micróbios de uma doença letal. Embora a experiência de vida tenha lhe ensinado a respeitar esses profissionais, persistiu a noção de que havia quem se beneficiasse da desgraça alheia.
Apesar das diferenças e divergências nítidas na visão que, do mundo e dos problemas filosóficos, têm cristãos e marxistas, considerou que estavam todos embarcados numa mesma – e prodigiosa – viagem cósmica, irmãos e vizinhos na perplexidade e na esperança. Diante da fome, da miséria, da doença, do desemprego, da opressão e da violência, não fazia sentido dividir forças ou semear a discórdia. Abraçou a Teologia da Libertação – antiópio do povo – e chamou a atenção não para a influência do marxismo na igreja, mas a insuspeitada influência da igreja no marxismo. Enxergou na libertação do ser humano, coisa concreta, de carne, o pensamento comum entre as crenças.
Hélio lírico, Hélio poeta, Hélio artista, certo de que toda arte é exílio e está tingida de ausência. Hélio contra os donos da vida, a multidão dos sérios, os pensionistas da morte, os vendilhões do templo.
Era cristão, o Hélio, cristão que acredita na materialidade do Cristo, que enxerga Deus no coração da matéria, no simples gesto de abrir uma torneira, na severa alegria de chupar uma laranja – haja Deus! Não lhe atingem as críticas marxistas – e freudianas – da ilusão religiosa, pois não transfere para o outro mundo o advento da justiça, da liberdade e da fraternidade e da alegria. Sua ideia de Deus exige compromisso radical com a verdade e o amor – aqui, agora, mergulhados no milagre como estamos. Hélio lírico, Hélio poeta, Hélio artista, certo de que toda arte é exílio e está tingida de ausência. Hélio contra os donos da vida, a multidão dos sérios, os pensionistas da morte, os vendilhões do templo.
Nos anos 80, escreveu rotineiramente para a imprensa. Falou sobre as Diretas, sobre Tancredo, sobre a guerrilha dos ricos e a grande tosse dos pobres. Combateu a tortura e a pena de morte. Defendeu os tumultos da paz. Proclamou a burrice do demônio. Conciliou Cristo, Marx e Freud – discutiu vida psíquica, social e espiritual. E, antes que as semeaduras que fez no tempo fossem reunidas em um livro, Hélio, subitamente, deixou de ser.
Silencioso rio de ébano onde o Cosmo se espelha, a morte se processava e fluía com Hélio desde o seu nascimento. Entrou então em um reino de luz e sombra, que dão-se sempre as mãos na eterna passagem das coisas. Morrer, quando se morre bem, é esvair-se na obra construída. Hélio passa, mas fica. Seu pensamento, registrado em poucos, mas saborosos, livros, são um monumento à sua morte, expressão de sua vida.